terça-feira, 14 de outubro de 2014

Uma notável descoberta: villancicos barrocos cantados em português

Grupo suíço A Corte Musical é liderado pelo brasileiro Rogério Gonçalves

João Marcos Coelho / Cmais+ Música


A Corte Musical, grupo vocal e instrumental criado na Suíça em 1998, dedica-se à redescoberta e execução de músicas esquecidas de compositores portugueses e espanhóis dos séculos 16 e 17. É dirigido pelo brasileiro Rogério Gonçalves, formado na Schola Cantorum da Basileia. Ele estudou fagote com Pedro Sierra, fagote barroco com Claude Wassmer e música medieval com Randall e Kenneth Zuckermann.


Évora é um precioso banquete de villancicos que permaneciam inéditos nas estantes da Biblioteca Pública de Évora, em Portugal. Sabe-se que neste período histórico formidável da história portuguesa o ciclo dos descobrimentos impulsionou o país, então sob um domínio espanhol que se estendeu até 1640. Assim, músicos portugueses trabalharam nas cidades espanholas, e vice-versa. Assim, os villancicos espalharam-se não só pelos dois países mas também pelas colônias recém-descobertas.

O villancico é uma canção composta em geral de versos de oito sílabas distribuídas por quatro ou cinco vozes. A forma contém um estribilho, ou refrão, e coplas, ou estrofes. Na origem, o villancico era uma canção profana, mas acabou subindo as escadas das igrejas e entrou na liturgia católica, em geral nas grandes festas religiosas. Assim cresceram em tamanho e complexidade: a linha do baixo prevê um acompanhamento instrumental; por outro lado, abriu-se espaço para estrofes a cargo de vozes solistas. No final do século 18, a avassaladora ária italiana praticamente "matou" o villancico, sob a forma das cantatas para voz solista, preferidas pelo público e pelos compositores.

A bela pesquisa de Rogério Gonçalves e de sua Corte Musical resgata um pouco da diversidade e riqueza musical da cidade de Évora durante o século 17, que com seus vários compositores e mestres-de-capela tornou-se um dos centros musicais mais importantes da península ibérica. Évora produziu alguns dos melhores compositores da época, como Manuel Mendes, Diego Dias Melgaz e Filipe de Magalhães. E formou futuros mestres-de-capela para a Capela Real de Lisboa, como Manuel Cardoso e Duarte Lobo, os dois maiores representantes da "era de ouro da polifonia portuguesa", na expressão de Eva Juárez no texto do folheto do CD.

Entre as obras da Biblioteca Pública de Évora encontram-se também várias composições anônimas. Mas o maior significado desta gravação é que o Cancioneiro de Évora nos traz raros villancicos sobre versos portugueses.

Você vai ouvir villancicos que eram cantados nas missas, como "Eu e vós, meu doce emprego", composto para a Ascensão, com estes versos:


fazemos hoje jornada,
vós com corpo alma e vida,
eu com vida corpo e alma.
Triunfante, entre mil rayos,
caminhais com linda traça,
vós lá por montes de luzes,
eu cá por vale de lagrimas.
Estribilho
Inda que ambos partimos,
meu Deos minha alma,
só o não hir comvosco,
hoje me mata.
Coplas solo
Do saudozo, e do alegre,
ambos sentimos a cauza,
eu, asim como que fica,
vós tal como que se aparta.
Hum e outro, estamos hoje,
em opozição contraria,
vós, a festejar auzencias,
eu a lamentar distancias.


Outro villancico em português:

Ameaças o morrer:
Como morte podes dar,
Se estou morto de hum penar,
Se estou morto de hum querer?
Mas he tal essa fereza,
Que quer dar a hum fino amor
Huma morte com rigor,
Outra morte com a belleza.
Confunde pois a nociva
Impiedade, que te exhorta,
A um tempo huma vida morta,
A um tempo huma morte viva.
De teu rigor os abrolhos
Se rompem da vida os laços,
Hey de morrer em teus braços,
Hey de enterrar-me em teus olhos.


Última informação sobre Évora: o CD alterna faixas instrumentais com cantadas. Além de um sacudido lundu da corte com suspeito ritmo nordestino que é puro xaxado e com direito a palmas, a primeira faixa – vejam que rica coincidência – é um ponteio barroco, ou seja, um improviso de Rogério Gonçalves sobre uma melodia do conhecido artista multidisciplinar pernambucano Antonio Nóbrega, que se iniciou na vida artística como violinista do Quinteto Armorial, a convite de Ariano Suassuna. E o movimento armorial de Suassuna, sabe-se, mergulha fundo nas raízes medievais, misturando-as com a cultura nordestina.

Rogério Gonçalves possui outras gravações, com obras do compositor barroco catalão Francesc Valls (Pan Classics) e Flores de Lisboa (selo K617).

Faixas:
1. Ponteio barroco (instrumental) - Rogério Gonçalves
2. Amante Deus (Vilançete for the Feast of the Circumcision of Jesus) - Pedro Vaz Rego (Évora 1673-1736)
3. A la villa voy (Villancico humano) - Anônimo
4. Ameaças o morrer - Manuel Botelho de Oliveira (Salvador 1636-1711)
5. Mas no ay que admirar (Villancico for the Blessed Sacrament) - Frei Manuel dos Santos (Lisboa 1668-1737)
6. Lundú da corte (instrumental) - Rogério Gonçalves
7. O que assombro (Vilançete for the Feast of Saint Lucia) - Frei Miguel da Natividade (Obidos, c. 1630 - Lisboa c. 1690)
8. Ya las sombras de la noche (Tono a 4 humano) - Antonio Marques Lésbio (Lisboa 1639-1709)
9. Dime como he de portarme (Villancico for the Blessed Sacrament) - Antonio Marques Lésbio
10. Eu e vós, meu doce emprego (Vilançete for the Feast of the Ascension) - Anônimo
11. Pavana (Instrumental) - Anônimo
12. Sentada ao pé de hum rochedo (Vilançete for the Feast of the Ascension) - Anônimo
13. Suspenda toda a armonia (Vilançete for the Feast of Saint Lucia) - Anônimo

Fontes:
[1] Variações sobre a melodia de “Ponteio Acutilado” por Antônio Carlos Nóbrega (Recife, 1952)
[2] Ms. Cod. CLI/1-2d. N°27 – Biblioteca Pública de Évora
[3] Cancioneiro d’Elvas (c. 1570) - Biblioteca Pública Hortênsia,Elvas, Portugal
[4] Chacona a partir da “Anarda ameaçando-lhe a morte” Música do Parnasso (Lisboa, 1705), Melodia: contrafactum de uma ciaccona por Francesco Cavalli (Crema, Itália 1602 - Veneza, Itália, 1676)
[5] Ms. Cod. CLI/1-3 d. N°19 – Biblioteca Pública de Évora
[7] Ms. Cod. CLI/1-2d N°21 – Biblioteca Pública de Évora
[8] Ms. Cod. CLI/1-1 d. N°14 – Biblioteca Pública de Évora – Restauração da parte de soprano das coplas: Corien de Jong; parte de soprano para o estribilho: Palácio da Ajuda, Lisboa (Ms. 47-VI-11)
[9] Ms. Cod. CLI/1-1 d. N°11 – Biblioteca Pública de Évora
[10] Ms. Cod. CLI/1-5d N°18 – Biblioteca Pública de Évora
[11] Huerto ameno de varias flores de música, Martín y Coll,
(final do século 17), composição da parte de segundo violino por Rogério Gonçalves & Corien de Jong
[12] Ms. Cod. CLI/1-5d N°19 – Biblioteca Pública de Évora
[13] Ms. Cod. CLI/1-4d. N°20 – Biblioteca Pública de Évora

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