domingo, 30 de novembro de 2014

Mudança oceânica, a outra grande ameaça ambiental

Poluição, pesca industrial predatória e acidificação estão devastando vida marinha. Há saída: deixar de ver oceanos como “terra de ninguém”, sujeita à exploração dos mais fortes

Por Christophe Ventura, no Mémoire des luttes | Tradução: Inês Castilho | Outras Palavras


Em 21 de setembro de 2014, centenas de milhares de pessoas mobilizaram-se em 158 países numa “Marcha dos povos pelo clima”. Convocado para dois dias antes do início dos trabalhos da Cúpula sobre o Clima da ONU, em Nova York, este foi o maior evento pela justiça climática já organizado no mundo. Integrantes deste poderoso movimento irão expandir suas atividades ao longo dos próximos meses, até a organização, em Paris, entre 30 de novembro a 11 de dezembro de 2015, da 21ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (Cop21).

Agora, a questão das mudanças climáticas entrou – finalmente – na agenda política e da mídia global. Talvez tarde demais, mas enfim… Em torno deste tema crucial, espalha-se, em nossas sociedades, um amplo e saudável debate sobre a espinhosa questão do nosso modelo de desenvolvimento.
Recifes de coral, um dos ecossistemas marinhos mais fragilizados: ocupam 0,1% da área, mas abrigam 25% das espécies dos mares. Acidificação oceânica, provocada por excesso de CO², pode destruí-los

Mas uma outra ameaça, infelizmente menos percebida, paira perigosamente sobre o planeta: a mudança oceânica. Lembremo-nos, os oceanos produzem metade do oxigênio que respiramos, graças especialmente aos fitoplânctons. Eles absorvem mais de um quarto do dióxido de carbono que emitimos na atmosfera. Em 2013, essas emissões de CO² atingiram um novo e trágico recorde. Três bilhões de pessoas dependem, para sua existência, dos mares, e 350 milhões de postos de trabalho estão diretamente ligados a eles. Os litorais são nossos principais centros populacionais e abrigam a maior parte da infraestrutura necessária às atividades humanas. Mais de um terço do petróleo consumido pela humanidade, e um quarto do gás natural, proveem das zonas submarinas.

Como lembra um relatório recente publicado pela Comissão Oceânica Mundial (Global Ocean Comission), intitulado “Do declínio à restauração – Um plano de resgate para o oceano mundial”[1], “não é exagero afirmar que todas as formas de vida sobre a Terra, aí compreendida a nossa própria sobrevivência, dependem do bom estado e das riquezas do oceano. A diversidade biológica que ele contém é praticamente inestimável. Assim, somos bilhões a necessitar dele como fonte de alimento, oxigênio, estabilidade climática, chuvas e água potável, de transporte e energia, de lazer e meio de subsistência. “Nossa dívida vital para com o oceano é enorme. Mas nosso maior ecossistema – os oceanos cobrem cerca de três quartos do globo – corre agora um grande risco.

Num artigo de título eloquente – “Sea Change: The Ecological Disaster That Nobody Sees” (“Mudança oceânica: o desastre ecológico que ninguém vê”) [2], o jornalista norte-americano Richard Schiffman observa que “nos mantemos muito bem informados sobre o fato de que nossa civilização industrial desestabiliza o clima terrestre, mas pouca se sabe sobre a existência de outro desastre ambiental em curso: a crise mundial dos oceanos”. Baseando-se também nas conclusões alarmantes do relatório da Comissão Mundial do Oceano, ele soa o alarme: “Especialistas dizem que já estamos diante de um processo de extinção de espécies nos oceanos que poderia rivalizar com o da “Grande extinção” do Permiano (há 250 milhões de anos), quando 95% das espécies marinhas desapareceram devido aos efeitos combinados de elevação da temperatura, acidificação, perda de oxigênio e destruição do habitat – todas elas condições que enfrentamos hoje”.

A situação é grave. Mas desta vez, algumas décadas de atividade humana serão suficientes para nos conduzir direto ao abismo. Como sublinha a Comissão, “nosso oceano está em declínio. A destruição dos habitats, a perda da biodiversidade, a sobrepesca [3], a poluição, as mudanças climáticas e a acidificação dos oceanos levam o sistema oceânico à ruína. A governança é totalmente inadequada e, em alto mar, a anarquia reina sobre as ondas.” Acrescenta-se: “O progresso tecnológico e a regulação inexistente alargam o fosso entre ricos e pobres: certos países são capazes de explorar os recursos, que diminuem, enquanto os que não têm meios sofrem a consequências. A estabilidade regional, a segurança alimentar, a resiliência climática e o futuro dos nossos filhos encontram-se todos em risco.”

O documento identifica cinco fatores principais que, agindo de modo combinado, prometem, pelo andar da carruagem, colocar o oceano mundial em declínio irreversível. Trata-se de: a) explosão da demanda de recursos; b) desenvolvimento de meios técnicos de operação e exploração que são usados em uma lógica exclusivamente movida pela busca de lucro sem limites; c) redução dos estoques de peixes; d) alterações climáticas e e) falta de regulamentação das zonas de alto mar, que representam 64% da superfície marítima do mundo. Mantido fora de todas as jurisdições nacionais, esse espaço – que “desempenha (…) função essencial à manutenção da vida em áreas localizadas dentro dos limites da jurisdição nacional dos Estados costeiros” – está sujeita a todo tipo de saque: excesso de extração de recursos, sobrepesca [4], poluição – particularmente pelos plásticos [5] – etc. Conforme os autores do relatório, “se o princípio da ‘liberdade no alto mar’ evocou em outros tempos imagens de aventura e oportunidade, ele hoje transmite a imagem da implacável ‘tragédia dos bens comuns’ caracterizada pela destruição dos estoques de peixes e outros preciosos recursos marinhos. A liberdade é explorada por aqueles que têm os meios financeiros e oportunidade, protagonizando a falta de prestação de contas e de justiça social”.

Nesse contexto, as mudanças climáticas produzem fenômenos perigosos e incontroláveis. Elas estimulam um processo de acidificação das águas. A elevação dos níveis de CO² na atmosfera intensifica sua presença no mar, mecanicamente, para em consequência modificar, pouco a pouco, o equilíbrio do carbono. Esta acidificação, cuja taxa nunca foi tão elevada em 300 milhões de anos, já afeta o equilíbrio vital de grande quantidade de espécies vivas (corais, moluscos e plânctons que produzem nosso oxigênio), destruindo seus esqueletos e conchas, constituídos de carbonato de cálcio. Eventualmente, uma grande elevação da temperatura global devastará a vida marinha. Assim, segundo a Comissão, “é a própria vida do oceano mundial, do menor fitoplâncton às grandes baleias, que é afetada” por essas “mudanças sem precedentes nas condições químicas e físicas [que] já afetam a distribuição e abundância de organismos e ecossistemas marinhos”. E Richard Schiffman resume, criteriosamente: “Menos plâncton significa menos oxigênio e mais dióxido de carbono na atmosfera, o que reforça o ‘ciclo vicioso das mudanças climáticas’ “.

O aquecimento da atmosfera acelera, igualmente, o aquecimento dos oceanos. Tendo armazenado cerca de 90% da energia devida ao aquecimento da temperatura terrestre no decorrer das últimas décadas, eles viram a temperatura média de sua superfície aumentar 0,7°C em um século. Estima-se que, em algumas áreas, este aumento atingirá mais de 3° C até o final do século 21. Este fenômeno perturba diretamente o equilíbrio alimentar nas profundezas do oceano e afetará gravemente a segurança alimentar proveniente da pesca. Para a Comissão “isso tem (…) consequências alarmantes sobre a vida dos oceanos e constitui, provavelmente, o maior desastre ambiental invisível do nosso tempo.”

Um segundo relatório, este publicado pela Organização Metereológica Mundial (OMM) [6], confirma as sombrias previsões da Comissão Oceânica Mundial. Ele também afirma que “é provável que o aquecimento do oceano tenha efeitos diretos sobre a fisiologia dos organismos marítimos”, e aponta uma terceira consequência negativa do aquecimento global: a desoxigenação dos oceanos. O efeito combinado de elevação da temperatura e acidificação altera a presença do oxigênio na água. Sua quantidade deveria, assim, conforme o lugar, baixar de 1% a 7% no decorrer do século.

Reduzir as emissões de gases de efeito estufa não é, portanto, apenas um imperativo para o clima. É também urgente para salvar o principal ecossistema, indissoluvelmente ligado às condições de nossa própria sobrevivência. Para preservar os oceanos, devemos ao mesmo tempo lutar contra o aquecimento global, a poluição, a superexploração selvagem de seus imensos recursos, regulamentar a pesca mundial, as zonas de alto mar etc. Mas, sobretudo, pode-se dizer algo, tanto em relação aos oceanos quanto ao clima. Para salvá-los, e fazer deles “a nova fronteira da humanidade”, necessária a um desenvolvimento futuro, num contexto de expansão planejada, e “uma roda motriz para a recuperação de [suas] atividades” [7], há apenas uma solução: mudar o sistema.

NOTAS

[1] Este relatório foi publicado em junho de 2014. Para baixá-lo em sete línguas, acesse http://www.globaloceancommission.org/le-rapport-final-de-la-commission-ocean-mondial-est-enfin-disponible/

[2] Ler no site Truthout: http://www.truth-out.org/sea-change-the-ecological-disaster-that-nobody-sees

[3] En 1950, 1% das espécies eram vitimadas pela sobrepesca. Essa taxa já atingiu 87%.

[4] Esta é praticada por um número limitados de países, tais como o Japão, a Coreia do Sul, Taiwan, Espanha, Estados Unidos. Um segundo grupo de países é constituído pelo Chile, a China, a Indonésia, as Filipinas e a França.

[5] Conforme o relatório, 80% da poluição marítima provêm de fontes terrestres. Impulsionadas pelos ventos e pelas correntes marítimas, 15% dos detritos produzidos por nossas sociedades mantêm-se à tona, 15% estão suspensos na coluna de água e 70% encontram-se no fundo. Por sua vez, a produção mundial de plásticos aumentou de 63 milhões de toneladas em 1980 para 270 milhões em 2010 (540 milhões de toneladas estimadas em 2020). Estes resíduos plásticos – incluindo micropartículas, que terminam entrando na cadeia alimentar humana – são parte substancial da poluição global.

[6] Ler “Tempo e clima: mobilização dos jovens”, Boletim da Organização Meteorológica Mundial, volume 63 (1) 2014 (http://library.wmo.int/opac/id=3099#.VCPnRoVjkiZ).

[7] Segundo as fórmulas do deputado europeu Jean-Luc Mélenchon. Em artigo intitulado «La France, puissance maritime qui s’ignore» [França, potência marítima ignorada] (RIS — La revue internationale et stratégique, n° 95, outono 2014, http://www.iris-france.org/Archives/revue/numero_95.php3), o dirigente político expõe como “fazer com que a política entre no mar” e construir uma “economia do mar” respeitosa desse “bem comum ameaçado” para transformá-lo em “laboratório do ecossocialismo”.

sábado, 29 de novembro de 2014

Olhar, fotogenia e sociedade do espetáculo

Para Deleuze, rosto é “placa nervosa” que nos revela o interior e conecta com desejo do outro. Mas e quando esta autenticidade choca-se com ditadura dos padrões estéticos?

Por Andressa Monteiro / Outras Palavras

“Acima dos olhos e do coração está o desejo (…).
É o desejo que leva o ver a se transformar em ação de ver,
dando às paixões e ao intelecto movimento infinito.”
Giordano Bruno

Muitos acreditam que a beleza é mera questão de opinião. Outros creem que a alternativa de escolha do belo ou do feio carrega memórias afetivas e a presença ou ausência de preconceitos estéticos de homens e mulheres, como: harmonia, proporção, simetria, ordem, clareza, delicadeza, pele macia, cabelo espesso e brilhante, ou uma cintura marcada, por exemplo.
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De acordo com a definição filosófica de Platão, a concepção de belo procura desviar-se da intenção, responsabilidade e julgamento humanos ao definir o conceito, deixando-o no campo da imaginação. Ele afirma: “o belo é o bem, a verdade, a perfeição. Existe em si mesmo, apartado do mundo sensível, residindo, portanto, no mundo das ideias. A ideia suprema da beleza pode determinar o que seja mais ou menos belo.”

Por outro lado, a ciência aponta que a beleza é um conceito mais flexível e menos romântico do que se imagina. A definição do que é ou não bonito e de traços físicos harmoniosos pode ser revelada desde o instante em que nascemos por questões de adaptação evolutiva e êxito reprodutivo.

O austríaco e ganhador do prêmio Nobel Konrad Lorenz sugere que “até as feições graciosas de uma criança servem como um artifício biológico para provocar sentimentos ternos com um objetivo claro: desviar o sentimento de agressão. Uma pele e cabelos macios, olhos e pupilas grandes, bochechas roliças, rosadas e um nariz pequeno fariam parte de uma tática de sobrevivência: se as crianças morressem por falta de cuidado dos pais, a natureza oferecia-lhes traços irresistíveis para que outros adultos pudessem ‘adotá-las’”. Isso também explicaria por que grande parte das pessoas se comove com bebês e filhotes.

Analisando rapidamente a perspectiva da simetria e do movimento renascentista presente em obras de Leonardo da Vinci e Michelangelo, quanto mais próxima uma face ou uma forma estiver de uma ordenação matemática proporcional, mais bela ela seria aos olhos do observador. É como se a argúcia da beleza estivesse ligada a certa necessidade humana de ordenar, organizar e entender o mundo da forma mais racional possível.

A definição de belo também debate conceitos econômicos e sociais por meio da venda de uma ideia de beleza consagrada e padronizada – evidente nas indústrias de moda, estética e midiática –, pela inspiração que causa em seus admiradores (poética do romantismo) e por um poder intrínseco que atrai a simpatia e a união por objetos ou causas comuns entre um grupo.

“Os intelectuais que afirmam que a beleza é relativa não ajudam a explicá-la”, afirma Nancy Etcoff, psicóloga da Universidade de Harvard e autora do livro A Lei do Mais Belo, lançado no Brasil em 1999. “Dá para dizer que há uma realidade central no belo. Afinal, em todas as culturas elementos semelhantes têm constituído uma força estética poderosa.”

Ninguém tem dúvidas de que a sociedade, a economia, a política, a religião, a psicologia, a filosofia e o ambiente influenciam e são influenciados por padrões estéticos de beleza nos tempos modernos.

Historicamente, a definição do belo é uma das maiores invenções da estética clássica, grega e romana, com três principais características formais: a ordem, a simetria e a proporção. Mas, por não ter relações plenamente comprovadas cientificamente com outros elementos físicos que também geram atração aos seres humanos, a definição renascentista é invariavelmente contestada por cientistas e pela sociedade.

É possível gostar do que é feio, amargo ou assustador – dessa forma, não seria o gosto que definiria o que é belo. O debate pela resposta do que consideramos feio ou bonito é pertinente e tem maior conexão, primordialmente com determinadas características, tanto visíveis quanto biológicas, nos objetos e seres, ao invés de seleções pré-estabelecidas ou uniformizadas do conceito.

A linguagem auditiva, verbal e fisiológica como complementação da imagem no processo da atração física humana.

Apaixonar-se, flertar ou manter relações sexuais e afetivas com uma pessoa pode parecer uma atividade sobretudo visual, com trocas de olhares e análise física do perfil de um indivíduo. Mas a voz, assim como a linguagem verbal e auditiva, também desempenha um papel importante no jogo de sedução e atração entre um ou múltiplos parceiros.

De acordo com a hipótese de Cláudio Munayer David (2006, p. 107-112) em A musicalidade da fala – o objeto sonoro em Freud, “a linguagem verbal e a musical são códigos de comunicação originados da mesma forma de qualificação dos afetos. Dar forma aos sons na música tem o mesmo significado tranquilizador que encontrar a palavra adequada para expressar um afeto ou uma impressão. Os sons compartilhados dentro de uma cultura se transformam, em grande parte, nas representações de palavras; outros, em representações musicais; alguns ainda permanecem diretamente ligados à satisfação do afeto pela descarga pura”.

Ele ainda explica que os sons da fala que escapam à representação da palavra interferem na semântica do discurso e do pensamento, em um constante jogo pela busca da satisfação do desejo. “Algumas dessas representações podem ser traduzidas pela lógica própria da linguagem musical. O som de uma voz pode conter uma enorme riqueza de importantes informações biológicas e sociais.”

Em pesquisa publicada no portal Plos One, a explicação para nossas atrações por vozes, por exemplo, tem a ver com o tamanho do nosso corpo. O estudo feito na Universidade de Londres examinou as preferências de trinta e dois voluntários e concluiu que a voz feminina aguda é considerada mais atraente e indica que a mulher é pequena.

No entanto, vozes masculinas mais graves foram consideradas as preferidas entre as mulheres e transmitem a informação de que os homens têm corpos maiores e mais atraentes. No caso das vozes masculinas, o que as torna ainda mais agradáveis é o tom da voz que, se for levemente sussurrado, transmite segurança e demonstra que os homens não são violentos, apesar de terem vozes mais graves.

Os pesquisadores garantem que esse tipo de estudo ajuda a compreender melhor os processos de atração e de busca por um parceiro ideal. Em relação ao som, já se sabe que o mesmo processo de seleção ocorre entre pássaros e mamíferos.

Já o fato de os homens preferirem mulheres menores, e a figura feminina, o oposto, a característica está ligada ao dimorfismo sexual, que exibe diversidades entre os parceiros. Essa preferência pelo que é diferente está diretamente associada a processos evolutivos.

A manipulação da fala feminina sugere que, ao alterar o tom de voz, há implícito um comportamento aprendido com base em estereótipos sexuais, em vez de características vocais reais de atratividade. “Quando uma mulher baixa naturalmente a sua voz, isto pode ser percebido como uma tentativa de soar mais sedutora e atraente e, portanto, serve como um sinal de seu interesse romântico,” afirma Dra. Susan Hughes (2001), da Universidade de Reading, na Inglaterra, em seus estudos.

Representações sonoras também reproduzem padrões que os sinais verbais, muitas vezes, não conseguem, ainda mais quando dinamizam lembranças afetivas. Quando pensamos nossas próprias ideias, utilizamos imagens sonoras da nossa própria fala. Podemos representar uma pessoa no pensamento pelas qualidades de sua voz. Da mesma forma, se estivermos escrevendo uma declaração de amor, pensaremos em imagens sonoras suaves e atrativas. (DAVID, 2006, p.107-112).

A música alcança efeitos psíquicos que ultrapassam delimitações estéticas por variações de timbre, tonalidade, ritmo, intensidade e acentuação, compondo a fala, a dança e o canto como formas adicionais de sedução.

A percepção auditiva desperta precocemente a atenção, originando uma imagem sonora capaz de lembrar o desprazer e, simultaneamente, reativar a experiência de prazer. O grito, que tem a sua fonte numa excitação corporal, acaba por suprimir a tensão interna ao exigir a realização da ação específica e reativando estados de desejo. (DAVID, 2006, p. 107-112).

Dessa forma, é possível pensar na conjectura de que as representações sonoras são as formas mais arcaicas na ontologia humana – ligadas desde o nascimento até a pulsão.

Em se tratando de questões olfativas e biológicas, geralmente a eleição de uma pessoa para envolvimento afetivo pode acontecer pela busca de um sistema imunológico incompatível e diferente daquele do parceiro, promovendo uma variedade genética maior. O desejo pode ser transmitido e buscado literalmente pelo gosto (saliva) e cheiro de alguém.

Certos hormônios e neurotransmissores são diretamente responsáveis pela química entre duas pessoas. A feniletilamina, neurotransmissor, pode comandar o poder de atração. Já o primeiro estímulo que temos quando vemos alguém é registrado pelo diencéfalo, parte do cérebro que identifica a imagem da mesma espécie. O som da voz e os feromônios, odor liberado por homens e mulheres, provocam a atração física.

De acordo com Álvaro Ottoni (2001), em entrevista para a Superinteressante, “a visão apurada do homem é um luxo evolutivo quando comparada com a de outros animais. É possível que nossa visão privilegiada seja uma compensação pelo olfato humano, que é bem limitado se comparado ao de outros animais. Já entre os humanos, se você trocar um recém-nascido por outro com os mesmos traços físicos, a mãe não irá reconhecer a diferença e muito menos rejeitar o bebê que não é seu pela diferença de cheiro.”

Portanto, os estímulos visuais, olfativos e auditivos fazem com que se ativem a feniletilamina e também a dopamina – que garante a sensação de prazer e bem-estar – e a ocitocina – conhecida como hormônio da paixão e do amor, provocando uma sensação de aconchego ao toque ou carícia.

Parte-se da conclusão de que sentir-se olhado não é um aspecto biologicamente neutro, em que a imagem é a única responsável. O organismo responde com diversas reações de alerta a um estímulo do parceiro. O coração se acelera, as glândulas sudoríparas secretam suor, mostrando assim uma ativação biológica múltipla daquele que se sente observado e admirado.

Estudos sobre fotogenia: a imagem pela busca da perfeição estética e pela notoriedade social e consumista

A palavra “imagem” pode ser analisada como a representação visual de um objeto ou ser, assim como uma reprodução da mente de uma sensação produzida por ela. Essa interpretação mental, consciente ou não, é formada a partir de vivências, lembranças e percepções e é possível de ser modificada por novas experiências e, consequentemente, por novas imagens.

Rose de Melo Rocha (2006) em Cultura da Visualidade e Estratégias de (In) Visibilidadedefende a ideia de que “falamos, produzimos, consumimos e vivemos cercados por imagens. Imaginamos imagens. Criamos imagens. Até mesmo transformamos imagens imaginadas em concretas representações. Somos capazes de sonhar com nossa própria imagem. Algumas delas seriam pura simulação.”

Já a dúvida sobre a própria imagem e o que ela representa para o indivíduo e para o outro podem ser algo habitual. “Os espelhos são testemunhas pouco fiéis e sem perspicácia, porque invertem as falhas da nossa simetria, que têm uma função decisiva na expressão.” (EPSTEIN, 2011).

Indagações que o reflexo no espelho nos traz podem variar entre: “Este (a) sou eu mesmo?”. “Como posso parecer tão bela aos meus olhos e tão indesejável aos dos outros?”. (Ou o efeito vice-versa?). “Sou muito melhor (ou pior) do que esta imagem que vejo!” Entre as indagações, uma delas tornou-se a célebre frase do conto de fadasBranca de Neve e os Sete Anões: “Espelho, espelho meu, existe no mundo alguém mais bela do que eu?”.

Talvez seja por esse incessante anseio de parecer sempre mais belo ou sofrer de males e disformismos da aparência que a imagem acabou por flexionar-se em moldagem e adaptação mais fáceis e abundantes – seja por meio de cirurgias corporais e tratamentos estéticos e até pela fotogenia, que oferece opções na interação de cores, sombras, ângulos, figurino, maquiagem e outros artifícios, em que o objeto fotografado e a imagem revelada são, em grande parte, belas, imutáveis e perenes aos olhos dos que possuem dúvidas sobre a própria imagem refletida no espelho.

Tudo que engendra ou gera a luz é fotogênico, e a modalidade é uma espécie de dispositivo exclusivo da fotografia e do cinema, utilizando-se de técnicas de iluminação, impressão e tiragens distintas.

Outro objetivo da fotogenia seria o de mostrar (caso ele não exista naturalmente) ou o de criar (mesmo que de forma artificial e efêmera) um encanto, muitas vezes ausente da realidade fotografada, que pode acontecer pela falta de atrativos do ser ou, mais certamente, pelo medo e receio do fotografado em mostrar seus atributos, que terão seus motivos identificados mais tarde nesse texto.

A fotogenia veicula um anseio estético de não apenas revelar algo, mas o de esconder, podendo levar-nos a sentir algo além da identificação e da objetivação práticas, elevando-nos, enaltecendo-nos e encantando-nos a um estado de afeto íntimo, subjetivo e sublime.

Se há uma ausência, ora do que vejo e ora do que não vejo, seja por motivos propositais de luz ou sombra decididos pelo fotógrafo, ou pela falta do que se revelar, esse duplo sentido possui valores que acabam por assegurar a presença do que falta. Porém, aquele ou aquilo que vemos já está modificado pelas escolhas, edições e alterações que a câmera fotográfica ou o fotógrafo proporciona.

De forma graciosa, espontânea e até não premeditada, a fotogenia natural, ou seja, sem procedimentos e alterações estéticas seria a aptidão de revelar algo particular e belo das pessoas, objetos e mundo; uma capacidade de reinvenção e olhar sob um novo prisma; a reinauguração de sensações como a atração, a confirmação e a segurança do que é bonito e o encantamento a partir da imagem registrada, sem processos extremos de montagem, influenciando a poesia da imagem.

Engana-se quem pensa que seres considerados “feios” ou “pouco atrativos esteticamente” perante a sociedade não podem ser fotogênicos. O medo e o desconforto podem estar entre as principais causas da opressão que a lente pode ter sobre o modelo. Isso porque a maioria das pessoas perde boa parte de sua espontaneidade na hora do tão esperado clique. Portanto, a fotogenia é uma habilidade, e, como toda habilidade, deve ser exercitada.

Certos elementos podem influenciar a resolução e estética de uma foto: a luz do ambiente, os objetos dispostos em cena, o comportamento e a química entre fotógrafo e modelo, a edição final da imagem, ou outros fatores de sensibilidade técnica, como a utilização de lentes, câmeras e equipamentos específicos.

Com relação ao ângulo do rosto de um modelo, Rodrigo Desider Fischer (2012) afirma que, segundo as considerações do filósofo francês Gilles Deleuze, “o rosto é uma placa nervosa que sacrificou o essencial da sua mobilidade global e que recolhe ou exprime ao ar livre todos os tipos de pequenos movimentos locais que o resto do corpo mantém habitualmente escondidos”.

O retrato, então, exibe, essencialmente, mais o nosso interior do que o exterior, revelando total visibilidade por meio de uma aparência induzida e transformada que a realidade não nos atribui, ou, talvez, que ainda não conseguimos perceber ou aceitar como fotogênica e bela pelos outros.

Tantas distorções, visões e manipulações do real podem levar ao questionamento da autenticidade de uma imagem, aqui explicada no texto “A Imagem Autêntica”, de Hans Belting. Essa pergunta se coloca desde a existência da fotografia, que já prometia uma resposta, garantida por uma técnica objetiva. De acordo com Belting (2006), se tiver que haver imagens, elas que mostrem a verdade. O efeito de ilusão e do imaginário do belo subitamente se inverte, onde a mesma pessoa que constrói uma realidade alternativa para a própria aparência perante si mesma e ao próximo, também critica a falsidade da imagem produzida.

Procuramos na produção de uma imagem aquilo que gostaríamos de ter e de ver com nossos próprios olhos, e, quando isso não nos é revelado, exigimos novas imagens ou a reestruturação delas para podermos realizar nossos desejos e anseios de aceitação e amor próprio.

No conceito de autenticidade, é indicada uma realidade que muda constantemente a nossa expectativa de graça, aceitação e alacridade diante das imagens. Por isso, sonhar, pedir, e esperar por uma imagem esteticamente perfeita pode gerar expectativas frustradas a partir do momento em que não se encontra um conteúdo relevante ou genuinamente belo.

O que sobra é a desilusão e o afastamento. Uma vez abalada a fé em uma imagem, ela pode se transformar em um signo, atribuindo um grau de observação da realidade, supostamente livre de interpretações ou deformações, mas considerado ainda mais arriscado ou sedutor para alguém, por um maior sentimento de frustração, caso ele não atenda às necessidades de quem o observa.

O escritor francês Guy Debord (1997) declara que a sociedade atual “prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade e a aparência ao ser”. Ele considera que “a ilusão é sagrada, e a verdade é profana. O sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado”.

A obsessão do espectador pelo objeto ou por si próprio é assustadora: quanto mais ele contempla o irreal, menos vive fatos reais; quanto mais se envolve por imagens manipuladas em estéticas dominantes de necessidade de aceitação, menos compreende sua própria existência, individualidade, identidade e ambições.

Inevitavelmente, a busca por uma aparência perfeita, resultante de uma imagem alterada e, por vezes, oca, mais o desejo de aceitação e de visibilidade como fatores integrantes de sucesso e de popularidade são vistos comumente nas sociedades e mídias contemporâneas. A transformação do corpo humano se torna alvo de sonhos que nunca farão jus à realidade.

A fotografia manipulada, a cirurgia estética em busca de padrões de beleza que precisam ser em todo momento preenchidos, mas também questionados, e promessas de uma vida nova e iluminada vão ao encontro do desejo de outra aparência, fazendo com que isso se torne uma necessidade física irremediável. A imagem idealizada leva as pessoas a desejarem “forjar um conceito estético falso de si mesmas e viver esteticamente em outro”, como afirma Fernando Pessoa .

Essa relação de aparência com a câmera e a apreensão da luz é um caso particularmente interessante. Aqui não se encaixa avaliar o perfil do modelo fotográfico, do artista, a magnitude de uma posição corporal, o jogo de expressão facial ou a beleza natural e incontestável do objeto ou ser retratado.

A estética proposta, nessa circunstância, adquire a função de suprir uma desmedida vontade de visibilidade por aqueles que buscam serem vistos de maneira única – a superfície modificada da imagem visa nada mais do que o olhar de todo um coletivo ávido por notoriedade, contemplação e pelo consumo de ter algo belo e excepcional ou mesmo aparentar ambos.

Pela visão do escritor e filósofo Walter Benjamin, a influência das imagens fotogênicas e suas consequências terminam revolucionando a nossa percepção visual. Edgar Morin complementa que “as nossas percepções são trabalhadas e confundidas pelas nossas projeções”. (Apud XAVIER, 1983, p. 146).

Trata-se de uma mudança causada pela imagem e, sobretudo, pela imagem cinematográfica, que torna o universo mais próximo do homem: ao ver uma fotografia na tela do cinema, o espectador percebe-a como sendo a sua própria realidade. Portanto, a imagem e, mais ainda, seu reflexo, encontram na fotogenia o conteúdo ideal de toda transformação perseguida e cultivada.

De acordo com Raquel Fonseca (2010), “a fotogenia multiplica formas de alteração da imagem por um “brilho extra”, que destaca o corpo oferecido a todos os olhares. A abundância de imagens, hoje, é a prova de uma visibilidade que parece reforçar a ideia da fotogenia como o poder de iluminação. Tecnologia e ciência garantem a fabricação do corpo e do seu renascimento através desta luz tão desejada.

A sociedade pede por um distanciamento e desvinculação do corpo físico e de relações afetivas mais concretas e profundas, em que a predominância é a ostentação e a veneração de imagens virtuais (vistas incessantemente na internet e em redes sociais), assumindo certa banalização da importância do corpo para o próprio indivíduo em questões relevantes.

Tratando-se de questões éticas e morais frágeis, exploradas em um culto e construção da beleza para fins lucrativos, prestigiando um efeito de poder e de dominação sobre um objeto, produto ou ser retratados, tal banalização se torna uma grande vitória; uma procura de modismos iminentes a serem seguidos e compartilhados com um restante comum.

A ritualização e a simbolização de um mercado, a sociedade do espetáculo e de aparências questionáveis, misturam-se cada vez mais com o desenvolvimento tecnológico, deslocando a constituição básica e tão essencial à formação humana do saber e do sentir, para o ter e mostrar. Talvez seja essa a razão pela qual os olhos se fecham quando o que se quer ver é o próprio desejo, livre e longe de alterações, submissões e interesses mundanos árduos de serem ignorados e/ou contestados.


Referências

BELTING, Hans. A Imagem Autêntica. UFRGS. Maio 2006.

CAVALCANTE, Rodrigo. Beleza pura: A ciência está provando que a beleza é um conceito bem menos flexível do que imaginamos. Pesquisas revelam que já nascemos com ideias bem definidas sobre o que é bonito e o que é feio. SuperInteressante, São Paulo, jan. 2001. Comportamento-Conceito. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ciencia/beleza-pura-441872.shtml>. Acesso em: 28 ago. 2014.

DAVID, Cláudio Munayer. A musicalidade da fala: o objeto sonoro em Freud. Reverso [online]. 2006, vol.28, n.53 [citado 2014-09-05], pp. 107-112. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952006000100016&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 20 ago. 2014.

EPSTEIN, Jean. Fotogenia do Imponderável. Tradução de Maria Irene Aparício. Arte Ciência.Com, ano VII, n.14, set. 2011. Disponível em: <http://www.artciencia.com/index.php/artciencia/article/view/41/131>. Acesso em: 06 set. 2014.

ETCOFF, Nancy. A Lei do Mais Belo: a ciência da beleza. Tradução: Ana Luiza Borges de Barros. 1ª. ed. São Paulo: Objetiva, 1999.372 p.

FISCHER, Rodrigo, Desider. Investigações sobre fotogenia: produção de afetos no cinema de John Cassavetes. Rumores, ed.11, ano 6, n.1, jan. – jun. 2012.

FONSECA, Raquel. A fotogenia como fundamento do desejo de transformação da aparência. Porto Arte, Porto Alegre, v. 17. n.28, maio 2010.

GEREMIAS, Daiana. Por que nos sentimos atraídos pela voz de quem é do sexo oposto? Mega curioso, Paraná, maio, 2013. Ciência. Disponível em: <http://www.megacurioso.com.br/ciencia/36416-por-que-nos-sentimos-atraidos-pela-voz-de-quem-e-do-sexo-oposto-.html>. Acesso em: 28 ago. 2014.

GUY, Debord. A Sociedade do Espetáculo. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 240 p.

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O som da sedução: voz feminina indica interesse ou infidelidade. Diário da Saúde, jun. 2010. Disponível em: <http://www.diariodasaude.com.br/news.php?article=seducao-voz-feminina-indica-interesse-infidelidade&id=5327>. Acesso em: 28 ago. 2014.

ROCHA, Rose de, Melo. Cultura da Visualidade e Estratégias de (In) Visibilidade. Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Comunicação e Cultura”, do XV Encontro da Compós, UNESP, Bauru, SP, jun. 2006.

SILVA, Josimey, Costa da. A imagem como conhecimento: o corpo, o olhar e a memória. 10º Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós- Graduação em Comunicação. ENAP. Brasília, 29 maio a 1 jun.

Som da voz e cheiros provocam atração física entre as pessoas. Portal G1, São Paulo, jun. 2012. Programa Bem Estar. Disponível em: <http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2012/06/som-da-voz-e-cheiros-provocam-atracao-fisica-entre-pessoas.html>. Acesso em: 28 ago. 2014.

VALE, Lúcia de Fátima do. A Estética e a Questão do Belo nas Inquietações Humanas. Espaço Acadêmico, Paraná, n. 46, mar. 2005. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/046/46cvale.htm>. Acesso em: 20 ago. 2014.

WERNER, João. Conceito estético do “Belo”. Aula de Arte, Paraná. Estética. Disponível em: <http://www.auladearte.com.br/estetica/belo.htm#axzz39UMrHGeV>. Acesso em: 28 ago. 2014.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Zeca Baleiro e Zélia Duncan cantam juntos no Sr. Brasil

Programa vai ao ar neste domingo (30/11), às 10h, na TV Cultura

Por Cmais+


Em janeiro deste ano, Zeca Baleiro e Zélia Duncan decidiram colocar as afinidades à prova em show inédito no Teatro Castro Alves, em Salvador. Quase um ano depois e diversas apresentações na agenda – além de outras ainda por vir –, os dois se encontram no Sr. Brasil para cantar e falar, entre outros assuntos, sobre o início da parceria e a ideia de dar sequência à turnê. O programa, apresentado por Rolando Boldrin, vai ao ar neste domingo (30/11), às 10h, na TV Cultura.
zeca baleiro e zélia duncan no sr. brasil_foto pierre yves refalo
Segundo Zeca, o encontro foi casual. “Fomos convidados para um projeto em Salvador, em janeiro deste ano. Só que antes de acontecer, ele acabou. Como nós já estávamos com vontade de fazer algo juntos, compor juntos, resolvemos bancar a empreitada e estreamos no Teatro Castro Alves”, explica. “O divertido é que o Zeca está fazendo várias coisas, e eu também. Mas achamos um jeito de encaixar [as agendas]”, completa Zélia.
Sobre a logística de produção do espetáculo, a compositora niteroiense é enfática: “A gente é organizado. Eu moro no Rio, e ele em São Paulo. Ele foi ao Rio, e eu a São Paulo. Ensaiamos o roteiro, fizemos tudo certinho”.
O roteiro musical do programa começa com Fox Baiano, composição dos dois com Luiz Galvão, e dá sequência com Tudo sobre você (John Ulhoa/Zélia Duncan), Bandeira (Zeca Baleiro), A natureza das coisas (Accioly Neto) e Ah, Eugênio (Zeca Baleiro/Zélia Duncan/Paulinho Boca de Cantor), tocada em primeira mão no Sr. Brasil. A dupla fecha a atração homenageando o próprio apresentador ao cantar Genuflexório, música de Boldrin com Adriano Stuart.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

'Marco Polo': Relatos e fantasias na corte de Kublai Khan

Série estreia no serviço de vídeo-on-demand Netflix em 12 de dezembro

Por Marília Fredini, do Cmais+
“Então o mestre Marco, filho de mestre Nicolau, estando por pouco tempo na corte, 
aprendeu os costumes dos Tártaros, a sua língua e suas letras e se tornou um homem sábio de grande valor. [...] “, 
tradução livre de Il Milione di Marco Polo (Ed. Einaudi, 1975)

As histórias de Marco Polo por muito tempo foram os relatos mais importantes e ricos sobre o oriente, sua geografia e civilizações. O explorador, natural da cidade italiana de Veneza, fez uma viagem de três anos ao lado de seu pai, Niccolò, e seu tio Maffeo,  seguindo a Rota da Seda, em 1271. Em caravanas, eles percorreram o oriente a partir da Armênia, seguindo até Bagdad. De lá, rumaram ao norte e à leste, passando pelo deserto de Lut e de Takamaklan e, depois, cruzando o Rio Amarelo (Huang Ho) até chegarem aos domínios de Kublai Khan, então Rei da Mongólia.

É a partir desse ponto que Marco Polo, série original da Netflix e da Weistein Company, começa a tecer os relatos originais do explorador à outras passagens fictícias, construindo uma narrativa envolvente aos moldes de séries como Os Tudors e Os Bórgias, recentes sucessos da televisão norteamericana e vencedores do Emmy 2010 e 2013, respectivamente. Com belíssima cinematografia e atuações bem preparadas, além da carga histórica importante, Marco Polo estreia em 12 de dezembro de 2014 exclusivamente no Netflix, em todos os países em que o serviço opera, aproveitando esse ótimo momento da narrativa seriada.

Os 10 episódios do drama foram filmados na Itália, Cazaquistão e Malásia. John Fusco, autor indicado ao Oscar por Corcel Indomável, é o criador e produtor executivo da série e dirige ao lado de Dan Minahan, que já trabalhou nas séries Homeland e Game of Thrones. Os diretores indicados ao Oscar, Joachim Rønning e Espen Sandberg, de Piratas do Caribe: Homens mortos não contam histórias, dirigiram os dois primeiros episódios e atuam como produtores executivos. O elenco global conta com Lorenzo Richelmy no papel de Marco Polo, o inglês Benedict Wong (Prometheus, Sunshine) como Kublai Khan, e Joan Chen (Twin Peaks) interpreta a esposa de Khan, Chabi Khatun.
Marco Polo - Netflix

Baseado diretamente nos relatos de Marco Polo, o roteiro mostra um explorador jovem e inexperiente, que consegue a confiança do temido Kublai Khan por conta de suas qualidades: observação, curiosidade e capacidade de aprendizado. Por vinte e sete anos, Marco Polo serviu ao rei mongol como conselheiro e embaixador. No retorno à Itália, foi feito prisioneiro da República de Gênova após a Batalha de Curzola e, na reclusão, ditou suas memórias a Rustichello da Pisa, escritor italiano encarcerado catorze anos antes. Esses relatos foram compilados e traduzidos para o latim em 1315 e, com a invenção da prensa um século depois, se espalharam pela Europa, ditando os rumos das grandes navegações, que levaram ao descobrimento da América. Por séculos, os relatos de Marco Polo permearam o imaginário ocidental com detalhes das cortes orientais, seus hábitos e costumes.

Confira o trailer da série Marco Polo, da Netflix

Na série da Netflix, os relatos de Marco Polo ao Grande Khan, no entanto, carecem de mais riqueza de detalhes, tanto na fala quanto nas imagens, perdendo a oportunidade de carregar de mais subjetividade o retrato de uma sociedade totalmente exótica para um italiano do século XIII. Algumas passagens com lutas e treinamentos de artes marciais trazem um pouco de fantasia à veracidade do enredo, seguindo a estética consagrada de O Tigre e o Dragão, e carregando a série de elementos já banais nos dramas baseados na cultura oriental, mas não desagradam. Como o próprio Dan Minaham ressalta, “suas histórias são tão lendárias que há diversos ângulos para se trabalhar [...] é parte mito .e parte histórico”.

A qualidade cinematográfica da série é altíssima: fotografia, figurino e direção de arte são dignos de grandes produções de Hollywood e a intenção é concorrer com a HBO no nicho de Game of Thrones, terreno ainda não explorado pelas produções originais da Netflix, mas do qual certamente tem os dados de audiência necessários para investir em um grande orçamento e atores globais. Vale lembrar que a riqueza de informações a respeito do comportamento de sua audiência foi fundamental para a grande virada na indústria do entretenimento que a Netflix comandou, passando de aluguel de VHS a domicílio para o principal pesadelo dos grandes estúdios e canais de televisão com a implantação de seu serviço de streaming em 2007, nos EUA e o recente investimento em produções originais.

Seguindo os moldes dos últimos lançamentos de conteúdo original do serviço de video-on-demand, todos os episódios da série estarão disponíveis para o público ao mesmo tempo, incentivando o binge-watching (termo em inglês que caracteriza o consumo de séries e filmes em grande quantidade, por vezes assistindo à uma temporada inteira em um único dia). A estrutura narrativa, fragmentada em alguns momentos, promove um binge-watching mais “insolente”: as viradas dramáticas, principalmente ao final dos primeiros episódios, não formam na audiência aquela “necessidade” de assistir ao próximo episódio logo para saber os rumos da história. A série House of Cards, primeiro conteúdo original da Netflix, é um bom contraponto nesse sentido, por ter como tema central as barganhas políticas do deputado Frank Underwood (Kevin Spacey). Segundo o site Variety.com, aproximadamente 634.000 assinantes do serviço assistiram toda a temporada (13 episódios de 50 minutos) de House of Cards no primeiro final de semana. A trama complexa e os fortes pontos de virada reforçam o comportamento de binge-watching. Não podemos esperar isso de Marco Polo, cuja narrativa mais arrastada e cinematografia contemplativa nos fazem apreciar os detalhes e acompanhar as personagens sem muita ansiedade. Mas é de se esperar uma crescente complexidade na trama, envolta por ardis políticos e militares, costurados por um pouco de romance e a sensualidade das mulheres orientais. É um bom programa para assistir a qualquer momento. É como ter sempre disponível um grande filme para acompanhar a pipoca no domingo a tarde.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Gonçalo Ivo apresenta suas mais recentes pinturas na Galeria Boulakia, em Paris

Em entrevista exclusiva ao Cmais+, o artista que conviveu com Iberê Camargo e outros mestres fala sobre a sua trajetória e a sétima individual na capital francesa

Por Rita Albuquerque, do cmais+ | foto Divulgação

Gonçalo Ivo
Gonçalo Ivo em seu estúdio no Brasil, em 2014 (Foto: Divulgação)

A partir do dia 2 de dezembro, a Galeria Boulakia, em Paris, apresenta 15 pinturas em grande formato produzidas pelo brasileiro Gonçalo Ivo nos últimos três anos.
Em sua sétima mostra individual na capital francesa, Gonçalo - fiel a si mesmo e à pintura - permanece aprofundando questões plásticas que lhe são caras: a cor como forma autônoma de linguagem, uma geometria mais próxima à poesia que ao rigor e uma latente espiritualidade gerada pela admiração por artistas do passado.
Aos 56 anos, o pintor que conviveu em sua juventude com Iberê Camargo, Aluisio Carvão e que tinha nas paredes da casa paterna Lygia Clark, Volpi, Eliseu Visconti e muitos outros mestres falou com exclusividade ao cmais+.
cmais+: Para começar, fale sobre quem é Gonçalo Ivo.
Sou essencialmente um pintor. Uma espécie de animal pictórico que vive um estado quase que eterno de imersão nas questões da pintura e da arte.
cmais+: Como se deu a descoberta desta faceta artística?
Meu interesse por arte e por pintura se deu muito jovem. Sou filho de poeta [Gonçalo é filho de Lêdo Ivo] e de professora. A casa de meus pais volta e meia abrigava encontro de escritores e pintores. Era criança quando conheci o grande pintor Iberê Camargo, de quem ele colecionava pinturas. Meus pais tinham uma biblioteca muito vasta e entre estes livros vários de pintura de todos os tempos, dos antigos aos contemporâneos. Ainda nos anos 50, meus pais adquiriram obras de Volpi, Milton Dacosta e Lygia Clark, além da pintura brasileira da virada do século 19 para o 20. Todo este ambiente plural me encantava. Houve também a descoberta da musica muito cedo. Eu com 10 anos de idade já ouvia Brahms e Mahler. Note, estou falando de um menino numa época em que a informação demorava a circular. A música é uma das outras paixões da minha vida. Quando passei a pintar e a copiar os quadros que estavam nas paredes da minha casa e a pedir a meu pai para ir a exposições e museus, ele logo me levou num périplo pelos ateliês de seus amigos. Evidentemente que o ateliê do Iberê fazia parte deste percurso, mas foram dezenas de outros percursos de artistas de diversos matizes que tive a alegria de visitar: José Paulo Moreira da Fonseca, Emeric Marcier, Ione Saldanha, Augusto Rodrigues, Abelardo Zaluar e muitos outros.
cmais+: Você está em Paris desde 1999. Há alguma relação entre a ida à capital francesa e a imersão nas questões da pintura e da arte, a qual já citou?
Minha mulher Denise e eu sempre viajamos muito. Nestes quase 30 anos de casados conhecemos uma boa parcela do mundo. Desde o nordeste brasileiro, suas zonas áridas, até a Europa. A vinda para Paris se tornou fundamental na minha vida de pintor. Vim para fazer uma exposição na Suíça e estou aqui há 15 anos. Porém, não perdemos de forma alguma o contato com o Brasil.
cmais+: Por que você julga ter sido fundamental, isto é, sob quais aspectos a mudança de ares impactou sua trajetória artística?
No princípio eu não tinha a menor ideia de que ia se operar qualquer mudança em meu trabalho. Mas você sabe, alguns artistas são como esponjas ou grandes antenas que acumulam muito do que está ao seu redor. Em minha opinião, sou um artista contemporâneo porque vivo no meu tempo, mas professo isto de maneira bem distinta que meus colegas, pois me dedico exclusivamente à pintura. O mundo contemporâneo entra em minha obra de uma forma menos evidente. Mesmo quando o trabalho ganha o espaço e me expresso através de objetos de parede e de outros que se aproximam da escultura tradicional, a linguagem é outra.
cmais+: Antigamente, falava-se sobre as musas ou da lira encantada do poeta. Quem são as musas que inspiram Gonçalo Ivo?
A palavra inspiração, que serve como partida para a criação, ela é muito ampla. Eu tenho várias musas. A maior delas é a própria pintura, aquilo que foi feito antes de mim pelos meus guias: Giotto, Ticiano, Rubens, Volpi, Klee, Guignard, numa lista infinita de admirações, paixões, reverências. Há a música, que me move o tempo todo e que não para da hora em que acordo até o momento em que durmo. E há também a vida, este visto e vivido que nos alimenta cotidianamente com seus deleites e horrores.
cmais+: Qual é o valor das cores e da simetria em sua produção?
A cor para a pintura talvez seja como a melodia para a música e a poesia. Sempre foi importante. O que é curioso é que alguns artistas a explicitam de maneira mais transcendente. Faço parte de uma família de artistas - pois há várias famílias -, em que a cor é um elemento praticamente constitutivo da obra, está dentro dela e a carrega para a superfície. Toda a simetria ou geometria que aflora no meu trabalho é pensada de maneira muito intuitiva, sem os rigores dos artistas concretos ou dos geométricos mais radicais. Mas a geometria está lá, não posso negar. Porém, quero fazer uma ressalva: a geometria aparece abundante na natureza. Existia antes do homem se apropriar dela como matéria para o pensamento, para a arte e para a filosofia. Em mim, às vezes imagino um determinado colorido. Sei que é muito complexo falar disso. É como se algo que não conheço falasse ou indicasse para mim certa direção.
cmais+: Então podemos afirmar que você é um artista intuitivo.
Como disse antes, a intuição é um guia para mim. Não tenho metas ou objetivos muito claros quando inicio um trabalho. Costumo dizer que pintar, para mim, é como se eu estivesse numa viagem, num trem, em que o mais importante não é nem a chegada nem a partida, mas a viagem em si.
cmais+: Pensando nisso, suas obras são independentes ou mantêm alguma relação?
Acredito que todos os meus trabalhos acabam se relacionando. Alguns críticos veem um momento de inflexão do que venho fazendo nos últimos anos. Pode ser, mas gostaria de tempo para que pudesse olhar no retrovisor e ver com mais clareza.
cmais+: Você espera que seus quadros comuniquem algo ao público?
Esta é uma grande incógnita. Alguns artistas dizem que não pintam para o público. No futebol, por exemplo, há aquele jargão que diz "fulano está jogando para a arquibancada". A impressão que tenho é que o êxito e o fracasso vivem de mãos dadas. No meu caso, o que faço hoje não passa por este tipo de questionamento. Talvez quando mais jovem ainda me questionava: "será que vou ser aceito?".
cmais+: Fale sobre as 15 pinturas que estarão expostas na Galeria Boulakia, em Paris, a partir do dia 2 de dezembro. Elas foram feitas nos últimos três anos, certo?
Estas pinturas são o que de mais recente produzi. E ainda estou terminando uma de 2,0 x 2,0 metros para a exposição que vai começar.
cmais+: E qual é a expectativa para a sétima individual na capital francesa?
Expor em Paris, especialmente na Galeria Boulakia, que é especializada no melhor da arte moderna e contemporânea europeia e americana - Monet, Renoir, Derain, Picasso, Joan Mitchel, Basquiat, Tapies etc - é, antes de mais nada, uma grande honra. É a minha segunda exposição na galeria de Fabien Boulakia, convite este que me deixa extremamente envaidecido, pois Fabien é um homem experimentado de 80 anos de idade e que já viu muita arte em sua vida.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Blitz: Roque de breque

Estúdio F destaca a trajetória da trupe fundamental para o rock brasileiro dos anos 80 e que abusava de irreverência e performance no palco

Por Eduardo Weber / Cmais+ 

Detalhe da capa do álbum 'As aventuras da Blitz', de 1982 (Reprodução)

O título parece absurdo, mas tudo indica que seu criador foi o ator, vocalista, compositor e um dos mentores da banda irreverente que animava o Circo Voador no Rio de Janeiro no início da década de 1980: Evandro Mesquita, o faz tudo da Blitz.

“Rock de breque” porque as músicas da Blitz eram verdadeiras histórias, com espaço para o “texto”, “canção” e personagens, como se pode verificar em “Você não soube me amar”, “Betty Frígida” (história do casal Roni Rústico e Betty Frígida), “Ela quer morar comigo na Lua” e “A dois passos do paraíso”, com a personagem Mariposa Apaixonada de Guadalupe.

O Estúdio F narra a trajetória da banda, que foi fundamental para o rock brasileiro dos anos 80, formada por uma trupe que abusava da irreverência, da performance e de um trabalho cênico no palco, graças às experiências anteriores que Evandro Mesquita e Patrícia Travassos tiveram no grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, uma referência do teatro brasileiro de então, de onde surgiram, além deles, Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Perfeito Fortuna e o diretor Hamilton Vaz Pereira.
_______________
Estúdio F
Blitz

Apresentado na RCB em 22 de novembro de 2014
Apresentação: Paulo César Soares
Produção: Rádio Nacional / RJ


Ouça

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A Europa xenófoba e a que resiste

Em resposta a mega-operação policial para controlar e reprimir imigrantes, rede cidadã mobiliza-se, via internet, para denunciar ilegalidades e articular protestos

Por Nathalie Olah, na Vice

No mês passado, aconteceu a maior operação de repressão a imigrantes ilegais da história da União Europeia. Na iniciativa batizada “Mos Maiorum” (um frase em latim para “costume ancestral” da época do Império Romano), realizada de 13 a 26 de outubro, os principais países membros da UE juntaram forças para reprimir a imigração ilegal e os sindicatos do crime organizado que participam disso.
Operações desse tipo acontecem duas vezes ao ano e estão crescendo com o aumento de imigrantes que chegam à Europa. Mas essa foi a primeira vez em que o público soube da iniciativa de antemão, graças a documentos do Conselho Europeu publicadospelo site Statewatch em julho. Os documentos estabeleciam que as guardas das fronteiras deviam repreender imigrantes e registrar informação relacionada à etnia deles, numa tentativa de entender esse fluxo para a Europa – e, eventualmente, interrompê-lo.
A publicação desses documentos deu a ativistas tempo suficiente para desenvolver uma ferramenta que permitisse rastrear os esforços de repressão enquanto eles aconteciam. Chamado Map Mos Maiorum!, o mapa, criado por um grupo associado ao coletivo berlinense antirracismo Nadir, permite ver fotos, ler testemunhos e receber atualizações das atividades do Mos Maiorum. Segundo os relatos, essas atividades envolvem policiais abordando pessoas no transporte público, pedindo documentos eprendendo quem não consegue apresentar os papéis necessários. Como você pode imaginar, em muitos casos a polícia é acusada de discriminação racial no processo.
“Queremos tornar isso visível”, explicou Alex, representante do Nadir. “Seria ótimo se pudéssemos alcançar os próprios imigrantes com essas informações, como um alerta, mas por várias razões isso tem sido impossível no momento. Em vez disso, queremos que as pessoas dos países que estão investindo nessa iniciativa saibam o que está realmente acontecendo.”
A operação foi iniciada pela presidência italiana do Conselho da UE e pelo ministério italiano do Interior em associação com a Frontex, a agência de segurança das fronteiras da UE. A Frontex enfatizou que teve um papel apenas de consultoria na operação. No entanto, esse envolvimento causou suspeitas; a agência vem enfrentando críticas de que se importa mais com o reforço da segurança nas fronteiras do que em combater o tráfico humano e defender os direitos humanos. Acredita-se que o trabalho de resgate da agência só serve para dificultar mais ainda a vida dos imigrantes.
Como na Operação Arquimedes da Frontex, por exemplo. Realizada em setembro pela Europol com a cooperação de 34 nações da UE, o objetivo destacado pelas autoridades era o de se infiltrar e erradicar o crime organizado. Mas, dos 1.150 presos, apenas 90 relataram tráfico humano; enquanto isso, a maioria foi tratada como envolvida na imigração ilegal. Isso fez crescer a desconfiança de que a operação, na verdade, foi uma desculpa para aumentar a segurança nas fronteiras e reunir informação relacionada às rotas de imigração, tudo sob o disfarce de uma iniciativa contra o tráfico e o crime organizado. A previsão é que o número de imigrantes afetados pela Mos Maiorum seja pelo menos o dobro da Arquimedes, que durou apenas uma semana.
Alex admitiu que o mapa Mos Maiorum não está completo. “O que é mostrado no mapa é uma pequena parte da imagem inteira, porque não recebemos atualizações de todos os controles”, ele disse. “Não temos boas conexões no Leste Europeu, por exemplo. Barreiras da língua são um problema, e não temos conexões com movimentos ativistas em todos os países.”
No entanto, tem havido bastante cooperação internacional, o que fez a operação ser bem documentada. “Pessoas e organizações de toda a Europa estão nos ajudando”, ele frisou. “Há um grupo muito ativo na Suécia, muitos na Itália e também na França. Esses grupos documentam esses controles e contribuem regularmente com o mapa. Mas a grande maioria dos relatos têm vindo de indivíduos anônimos. Esse é um projeto de financiamento coletivo, e recebemos doações de toda a Europa.” Além disso, protestos contra o Mos Maiorum foram coordenados na Alemanha, Suécia e Bruxelas.
A Itália, que começou a iniciativa, recebe imigração da Tunísia e Líbia, com pessoas cruzando o Mediterrâneo e sendo retidas na ilha de Lampedusa, cuja costa testemunhou uma série de tragédias relacionadas, como o afogamento de 300 imigrantes da Eritreiaem outubro do ano passado. A Frontex tem fracassado em impedir coisas assim. A Fortaleza Europa está reforçando seus balaústres para um número cada vez maior de pessoas deslocadas, numa luta aparentemente impossível de ser vencida.
Enquanto o número de imigrantes cresce, parece que a UE está endurecendo sua posição sobre imigração. A Comissão Europeia já está desenvolvendo um sistema eletrônico de entrada e saída para evitar que imigrantes excedam o período de estadia dos vistos. Muitos países-membros estão pressionando para que isso inclua impressões digitais e informações médicas de portadores de passaportes não europeus. Esses detalhes poderão ser compartilhados com as agências da lei. A retenção em massa de dados pessoais tem sido criticada pela Corte de Justiça Europeia, mas o governo italiano acha que já encontrou um furo nas objeções legais. A Mos Maiorum pode ter sido a maior iniciativa da UE contra imigrantes ilegais, mas aparentemente é só uma amostra do que está por vir.

domingo, 23 de novembro de 2014

No 'trote' violento da Medicina, lições de Freud e Foucault

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Humilhações na calourada expõem formação que vê o outro como objeto de gozo. E papel do Médico associa-se ao controle e esvaziamento da vida

Por Christiana Oliveira / Outras Palavras

Após uma onda de ódio e preconceito, ligado às eleições, nos deparamos com denúncias aterrorizantes, que seguem a linha da intolerância e demarcam o que sempre existiu – e que foi mantido no silêncio por anos, como algo inexistente. Na última terça-feira, 11/11, a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) realizou uma audiência sobre as denúncias feitas contra os universitários da Faculdade de Medicina da USP. Rompido o lacre da impunidade, tornaram-se públicos segredos sórdidos: assédios, estupros, preconceito e humilhação são as marcas principais. A universidade, que sempre soube das acusações, não se deu o trabalho de investigá-las, justificando a importância de “não manchar a imagem da instituição”¹.
Diante disso, questiona-se: de que maneira esses alunos, que passaram por uma educação de qualidade e são tidos como a elite intelectual brasileira, chegaram a esse nível? Ou, então: de que modo ocorrerá o encontro do futuro médico com seu paciente, se o outro é visto como objeto de gozo?
A escolha
Todo sujeito tem uma formação, e essa constatação não se reduz a um curso universitário, por exemplo, mas sim, aos desejos que motivaram as escolhas individuais de cada um, e que constituem esse ser. De maneira geral e abrangente, há o reconhecimento social da profissão. “Médico”, com letra maiúscula; há muitas associações que elevam a profissão a um ideal a ser assumido, e muitas vezes venerado. Além disso, envolve o prestígio e a promessa do retorno financeiro. Ou seja, há quem se sinta motivado (ou pressionado) a seguir tal carreira, deixando de lado a empatia com a profissão, o cuidado com o outro e o reconhecimento do sofrimento alheio.
A partir dessa escolha, vemos as pressões de uma formação objetificada, já que o sujeito fica inundado de metas e se torna alvo de humilhação. Os cursinhos preparatórios ditam o conteúdo a ser engolido e reproduzido pelos alunos, submetidos ao vestibular maçante e desigual. Tudo o que pode desviar a atenção desses estudantes tem que ser descartado, havendo uma inversão drástica entre as relações interpessoais e as horas de estudos. Com isso, há o incentivo ao individualismo como fortaleza: o outro passa a ser uma ameaça, que pode tirar a tão sonhada vaga na faculdade – ou transformada em sonho, através de toda essa neurotização criada.
Vemos, em suma, um aluno fragilizado, com seu narcisismo abalado. Porém, essa fragilidade é degolada e negada tanto quanto possível. Se o objetivo final não é conquistado, ele é tomado literalmente como um bosta, descartável, que tem que se reaver com o fracasso. Esse ciclo pode durar anos. E quanto mais se vive nessa objetificação, mais o sujeito pode aderir a essa postura, passando a olhar o outro dessa forma. Só há o reconhecimento de seus esforços, quando ele vence o vestibular: assim, ele passa a ser vangloriado, aplaudido, e lentamente o ego fragilizado começa a se restabelecer numa velocidade brutal, sendo bombardeado de investimentos. Há o tão sonhado reconhecimento.
Há de se lembrar que a reflexão se refere aos alunos que cometeram os delitos (vemos, por outro lado, alunos com uma postura distinta²), e que se mostram tão preocupados com a própria imagem quanto a faculdade. Ou seja, tais alunos identificam-se com essa perspectiva narcisista; narcisismo esse que sustenta o dos alunos, que mantiveram as denúncias silenciadas em nome de algo maior: seu interesse próprio.
Ao resgatar Freud (1914), temos que o narcisista busca, acima de tudo, proteger-se e se satisfazer; e para isso, ele nega a alteridade. O que é diferente, e, portanto, menor que ele, é descartável – e ele o faz porque o outro pode retirá-lo de sua posição onipotente, trazendo-lhe receio de perder seu lugar alcançado. Toda crítica que chega aos seus ouvidos é negada tanto quanto possível. Todos nós temos a marca do narcisismo, já que faz parte de nossa constituição. Uns mais, outros menos. No entanto, o que salta aos olhos é esse empoderamento que massacra o outro, um narcisismo perverso e exacerbado.
O papel assumido
Já na faculdade, os alunos são recebidos como os heróis da tragédia. Há, muitas vezes, uma aproximação da figura do médico com Deus; os médicos possuem o poder da cura, o dom da vida na palma das mãos. Como não reconhecer esse ser magnífico, que afasta nosso grande temor, que é o de encarar a finitude? Ou seja, como não ceder aos caprichos desse vencedor fálico, onipotente?
É nessa mesma ordem que muitas das denúncias ligadas a abuso sexual relataram essa postura: “Deixa de ser chata, eu sei que você quer”³. Temos, que a onipotência requer a submissão, já que retém o poder. Como seria possível o desejo do outro não incluir esse ser em destaque? Com o receio da recusa e da humilhação serem revividos, o sujeito regride, e aplica o que bem aprendeu: a objetificação e a violência. Não há espaço para o outro, para a escolha, há a submissão e a opressão.
Vemos, com as contribuições de Foucault (1980), que essa lógica tem aflorado cada vez mais. O médico, que antes se implicava no cuidado das doenças, hoje passa a ser o fiscal da saúde. É ele quem controla, através dessa variável, quais as condutas viáveis para a manutenção do bem estar. Desse modo, o médico se torna uma figura determinante para o aperfeiçoamento do biopoder. Sua formação, ligada a onipotência, e portanto ao poder, replica-se em sua atuação. Todo o cuidado ao sujeito doente é descartado em detrimento ao mantimento da vida – vida esvaziada e objetificada, através da exclusão da subjetividade e medicalização desenfreada.
Se nos voltarmos para a filosofia clássica, vemos que Aristóteles já nos atentou sobre a não dicotomização entre corpo e mente. No entanto, isso se perde na medida em que a classe médica fortalece as alianças com a indústria farmacêutica. Aliança essa que reinventa os conceitos de normal e patológico, no intuito de manter a dependência e a alienação dos sujeitos, instaurando o domínio sobre seus corpos. O saber depositado na figura do médico lhe cai bem, já que saber é poder. Ou seja, o saber determina o entorno e faz com que o outro, que não o possui, se submeta a ele.
Portanto, como desenvolver a empatia com o outro fragilizado, se desde a formação o sujeito tem suas próprias fragilidades refutadas? Como podemos repensar a educação, a formação pessoal e o social que nos toma? Afinal, permanecemos no raso se mantemos nossa crítica pautada na culpa, direcionando-a a um único agente. Agindo assim, reafirmamos outra dicotomização, entre o ser e o social, que é impossível, se considerarmos a dialética.
Referências Bibliográficas
¹ Medicina da USP registra 8 casos de estupro e 2 contra homossexuais, aponta MPE. Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/medicina-da-usp-registra-8-casos-de-estupro-e-2-contra-homossexuais-aponta-mpe > Acesso em: 13 Nov. 2014
² Felipe Scalisa: A face oculta da medicina. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/11/1547277-felipe-scalisa-a-face-oculta-da-medicina.shtml > Acesso em 13 Nov. 2014
³ Violência sexual, castigos físicos e preconceito na Faculdade de Medicina da USP. Disponível em http://www.brasildefato.com.br/node/30483 > Acesso em 11 Nov. 2014
ARISTÓTELES. De Anima. São Paulo: Editora 34, 2006.
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
FREUD, Sigmund. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

sábado, 22 de novembro de 2014

A revolução e a aurora

Um almirante negro, uma peça-cortejo encenada no Rio e um poeta sugerem refletir sobre valor das “cheganças”, na tradição popular e na História

Por Theotonio de Paiva / Outras Palavras

Seria toda revolução uma aurora?
Oswald de Andrade, Um homem sem profissão
Ao longe, vemos se aproximar um grande cortejo. São atores, bailarinos, músicos, que surgem da direção do cais. São tantos que a vista se perde em contar. Em seus passos cadenciados, embalados por uma velha melodia, atravessam uma larga via expressa. Talvez nos queiram dizer que aquela caminhada começou nos desvãos do mundo. No alto, trazem um caixão envolto com a bandeira do Brasil. Parece tratar-se de um herói. Mas que herói seria esse que entidades míticas reverenciam dessa maneira, a ponto de virem à frente, abrindo os caminhos?
O destino do teatro é andar. Assim, muitos se erguem às alturas, caminhando em pernas de pau, equilibristas de um destino, como os gigantes das velhas fábulas. Observados mais de perto, julgamos, pela doçura dos seus olhares, dos seus meneios, que, ao trazerem costumes religiosos antiquíssimos, aliados às fontes pagãs, não reverenciam uma personagem qualquer.
E isso nos faz pensar que também o tempo é outro e precisa ser mais bem compreendido, pois se divide em diversas possibilidades e criações. Desse modo, na narrativa da Chegança do Almirante Negro no Mar da Pequena África, sobressai de imediato o tempo da celebração.
Dança dramática revisitada pela Grande Companhia Brasileira de Mysterios e Novidades, sob a direção de Ligia Veiga, numa dramaturgia a partir de textos da diretora em parceira com Edmilson Santini, espetacularmente a ela se une um outro tempo, aquele da história concreta.
O primeiro é um tempo arcaico, ao passo que, no último, estamos distantes apenas de um século, num Rio de Janeiro, capital do país na época, que se transformava rapidamente. E é por aí que o sagrado e o profano se entrelaçam.
Naqueles primeiros anos de uma era dos extremos, a cidade, capital de uma jovem república, tendo dobrado a sua população na década anterior, contabilizava a marca de um milhão de habitantes. O impacto disso no papel a que se destinava o Rio de Janeiro irá se potencializar com as obras da reforma do porto e a construção do cais.
E essa ação não acontecia de forma a levar em consideração os interesses de amplos setores da população, sobretudo das classes subjugadas. Muito ao contrário. E se dava a conhecer através dos morros arrasados, das avenidas cortadas para darem vez somente aos moços e moças bem trajados da belle époque, pela destruição de abrigos e casas populares, curiosamente no suporte da lei que constrangia cidadãos.
Essa calculada ação do Estado, que ficou conhecida como bota-abaixo, foi ordenada a partir de um conceito visando a implantação do progresso e da civilização em termos definitivos. Se quisermos entender um pouco mais o que estava acontecendo, precisaremos levar em consideração o processo que as regiões periféricas ao desenvolvimento industrial iriam experimentar, num quadro que consagrava a hegemonia europeia por todo o planeta.
Assim, ao se transformar numa capital que se queria majestosa, com ares parisienses, abandonando os antigos contornos mouriscos, herdados da cultura ibérica, a cidade, inconsequentemente, via seus filhos serem expulsos do seu próprio mundo.
Num contraponto a esse estado de coisas, curiosamente se ergue o cortejo na antiga porta de entrada da cidade. Exatamente ali, naquele trecho da nossa costa, onde os navios estrangeiros outrora atracavam e despejavam levas de homens e mulheres d’outras terras. Interessante lembrar que foi exatamente essa condição uma das armas de convencimento para a grande transformação urbanística daqueles primeiros anos.
Encenado numa tarde de outono, num domingo, na antiga Praça Mauá, em frente ao Museu de Arte do Rio – MAR, a Chegança do Almirante Negro deixa claro que irá nos revelar, melhor, tirar o véu das nossas sabenças confusas e mais estupidamente imediatas. E é aí, quando aquela rude pergunta repousa de novo: quem é esse almirante negro? Talvez fosse melhor começar sabendo o que ele não é.
Marinheiros amotinados no couraçado “Minas Gerais”, em 1910. “Revolta da Chibata” foi comparada por Oswald de Andrade a levante russo na revolução de 1905
Estamos distantes daquelas figuras que, num passado não muito remoto, rapidamente se transformavam em efígies de poderosos, lambidas pelos dedos infantis nas páginas dos livros escolares. Nada de presidentes engalanados, donos da pátria, acadêmicos, marechais de ferro, poetas de sobrecasaca, ou heróicos bandeirantes que se glorificaram em “adquirir o tapuia gentio-brabo e comedor de carne humana”. Nada disso encontraremos nas vestes brancas de um estranho chamado João. A bem da verdade, a imagem do herói é cerzida no manto de uma fidalguia popular.
E o espanto que nos faz admirar tão velha criação humana, em parte, se dá por conta dos seus realizadores tomarem para si o papel de presentificar o mito, numa vasta e portentosa celebração/representação. E, assim, na sua alegria descomunal, acenam todos aqueles marujos de araque, dando vivas como quem re-apresenta o que poderia ter sido e não foi. Orgulhosos de si e da fantasia que expulsam do ventre. Nela, veremos, adernando em navios espetaculares, o episódio da Revolta da Chibata e de seu líder João Cândido Felisberto, o almirante negro.
Trata-se, provavelmente, de um dos movimentos políticos mais significativos da era moderna do Brasil. Como se sabe, a Revolta foi organizada por militares da Marinha do Brasil, cujo planejamento, por cerca de dois anos, viria a explodir num intenso motim, durante a semana de 22 a 27 de novembro de 1910, na baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Fundamentalmente, ocorre numa reação aos intensos castigos corporais e ao oferecimento forçado do consumo de carne podre a que eram submetidos os marujos.
Não é difícil entrever, nesse quadro, uma espécie de renitência dos tempos do escravismo. Curiosamente, o escritor Oswald de Andrade, uma das mais expressivas testemunhas daquela revolta, irá comparar, em seu livro de memórias, Um homem sem profissão, a experiência narrada no filme Encouraçado Potemkim, de Sergei Eisenstein, às reivindicações dos marujos brasileiros. Vamos lá.
Como se fossem pelos ares, em galopes de pernas de pau, os atores e bailarinos criam embates, em danças e contradanças. Igualmente pelo ar, os músicos plantados no chão fazem revoar uma antiga toada dos marinheiros. Por anos seguidos, a canção fora associada a um verde-amarelismo ufanista, espécie de devotamento cívico, que mascarava dores e chibatas, quando não ostentava toda a sorte de opressão. No entanto, agora, toma-se novamente gosto por ela. Como se a velha melodia fosse devolvida aos seus legítimos senhores, duramente arrancada que fora por mãos inábeis, para dela cuidar de forma perversa e molestá-la. Isso talvez equivaleria a dizer que o nosso navio, ao menos numa vaga esperança, também flutua.
Mais à frente, desce o corpo à terra. Se o almirante está morto, é nesse momento que a sua história tem início. Contada por bufões, que se desdobram em inúmeros atores-narradores, é essa reinvenção que dará suporte ao mito, levando-nos a pensar naquela linha tênue, a separar toda a fantasia da história, e retornando pela imaginação em voos surpreendentes.
Mas, do quê exatamente eles falam? A chegança, que serve de suporte à narrativa, ao invés de contar a história de mouros e cristãos, como versa a tradição dos folguedos, inverte a roda. Dessa maneira, a tradição imemorial é posta a serviço de uma recriação sensível daquilo que originalmente pertencia a um mundo ibérico e que nos chegou pela audácia, o destemor e a violência dos colonizadores, abrasileirando-se indelevelmente, unificada que fora pelo trabalho marítimo.
Quando paramos para observar a Chegança do Almirante Negro, notamos, contudo, em sua narrativa, a presença de uma história de tempos profanos misturados a uma transcendência que se liga aos ritos dos antepassados negros, negros assim como o nosso herói. E exatamente por isso se diferencia, ainda mais, das cartilhas e murais canônicos. Cândido, aliás, nos é apresentado ainda menino, como um antigo negrinho do pastoreio, que um dia irá se juntar às armas, por força da precisão e de algum oculto desejo heróico.
Mas a sua história seria outra, de um outro heroísmo. Assim, nesse auto popular brasileiro ocorre toda a sorte de violências, castigos corporais, lutas e revoltas, compondo um quadro extremado e violentamente poético de esperanças de um novo tempo, naufragadas em novas esperanças desesperadoras. E será João o grande líder que irá conduzir aquela pequena frota e os homens.
O embate decisivo, quando as armas dos navios apontam para a cidade, traz clamores e revoltas de toda sorte, em torno daquela epopeia. Parte da população civil se vê convidada a se envolver e a decidir de que lado está, ou identificada com os marinheiros, ou com o poder do Estado. Não há meio termo.
Dessa maneira, a cena é invadida por personagens que medem forças políticas e indiretamente repensam o estado civilizatório em que nos chafurdamos. São populares, jornalistas, políticos e artistas. E ditadores disfarçados, marechais, representantes do grande capital, altas patentes. Bem-intencionados, cretinos, puros d’alma, malfazejos, oportunistas e covardes. Alguns cabem na história como maioria. Outros têm os seus nomes reduzidos a lembranças incômodas.
E, em meio a todo esse conflito, surge como um bálsamo do futuro o relato sereno e vigoroso de Oswald de Andrade. Numa noite, ainda jovem, ao sair da casa de amigos, em meio à Avenida Central, mais tarde Rio Branco, o poeta ouviu falar em revolução. O coração maravilhado e sedento de aventuras, pergunta: onde? E apontaram o mar. E do mar se escutava um “prolongado soluço de sereia”.
E novamente no cais, ao admirar uma baía que “esplendia com seus morros e enseadas”, o escritor, lá pelas quatro da manhã, naquela hora shakespeariana em que tudo pode acontecer, qualquer levante, qualquer virada radical no enredo, é acordado por um reles ladrão.
Encontrava-se nos jardins da Glória, perto da Praça Paris. Em frente, navios de guerra, todos de aço. Naquele momento, reconhece o encouraçado Minas Gerais, que conduzia a marcha, o São Paulo e mais um outro. E, simbolicamente, todos ostentavam, “numa verga do mastro dianteiro, uma pequenina bandeira triangular vermelha”.
E, assim, conduzido por um destino zombeteiro, o poeta estava “diante da revolução”. E ali, muito provavelmente, ainda distante do que aquilo efetivamente significava para a história do país, semearia a pergunta que um diria conseguiria exprimir, numa notável poética: “Seria toda revolução uma aurora?”
Os dois movimentos se integravam. A esperança dos homens por uma radical transformação do mundo, ainda alicerçada, segundo alguns, numa categoria mítica, e a expressão do próprio mundo que se revigora em seus nascimentos e mortes, em suas noites de frio e suas manhãs ensolaradas. E aí, desembocamos nas cheganças.
Em alguma medida, as cheganças, duramente construídas por séculos de sabedoria popular e semi-erudita, se combinam com uma tradição muito antiga, que envolve a dialética vida e morte.
Espantosamente, nelas testemunhamos um registro humano das expressões dos ciclos vitais. Surgem enquanto possibilidade de compreensão do homem diante de um mundo tão fascinante quanto assombroso. E ele próprio, homem, sujeito e testemunha dessa transformação, chega (de chegança), para lutar e contemplar. E era (e ainda é) esse o mundo do folguedo popular, considerado como um ato divinatório, a considerar a própria criação como uma expressão que se perde em tempos arcaicos.
No entanto, se olharmos bem, na Chegança do Almirante Negro no Mar da Pequena África esse ciclo é diverso da tradição popular. Vai além. Nem melhor, nem pior, mas opera num minuano que sopra para outros lados, provocando um refazimento daquilo que herdamos para aquilo que potencialmente somos enquanto nação brasileira. E se deixa levar, ao final, num novo cortejo que se encaminha para um outro tempo, de ressurreição do herói, cujos cantos ensejam o romper de uma nova aurora.