terça-feira, 30 de setembro de 2014

Museu de Arte Moderna lança aplicativo

Com download grátis, "MAM Quebra Cabeça", traz 51 obras do acervo do museu para interação do público

Marília Fredini, do cmais+Arte & Cultura


“Não gosto tanto dos museus. Muitos são admiráveis, nenhum é delicioso. As idéias de classificação, conservação e utilidade pública, que são justas e claras, guardam pouca relação com as delícias. Ao primeiro passo que dou na direção das belas coisas, retiram-me a bengala, um aviso me proíbe de fumar”.
Paul Valery começa assim a série de ensaios ‘O Problema dos Museus’, de 1931. A identificação com esses sentimentos é instantânea e muito compartilhada, mesmo que inconscientemente, pela grande maioria da população que prefere outras atividades culturais à frequentar uma exposição. Crianças e, principalmente, adolescentes costumam ter certa “aversão” à simples menção da palavra “museu”, já sinônimo de algo antiquado, pouco divertido e muito solene, com a pesada aura inerente às obras de arte, às quais devemos observar - sem tocar -
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Esssa já não é mais a experiência que as crianças e adultos do século XXI terão. Vários museus ao redor do mundo estão aderindo à tecnologia para engajar visitantes e difundir suas coleções, levando a arte a lugares distantes e atingindo um público muito maior, que tem a possibilidade de interagir com suas obras preferidas e também de descobrir outras. Museus como o Louvre, em Paris, e o MoMA de Nova York já lançaram aplicativos para smartphones que auxiliam o visitante a explorar o museu e suas coleções, muitas vezes com recursos multimídia que tornam a experiência ainda mais rica, como a possibilidade de ver detalhes das obras (algo que, presencialmente, é praticamente impossível), e até vídeos dos próprios artistas falando sobre seu processo criativo. O Google, cuja missão é “organizar as informações do mundo e torná-las mundialmente acessíveis e úteis”, criou o Google Art Project, que traz mais de 32 mil obras de arte de 46 museus parceiros em altíssima definição. Através da plataforma, o usuário pode montar uma galeria virtual e percorrer museus ao redor do mundo.
Aplicativo MAM Quebra Cabeça
No Brasil, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM)irá lançar neste sábado (27/9) o aplicativo “MAM Quebra Cabeça”, a terceira ferramenta para smartphones da instituição. Dessa vez, a proposta é que o público possa se apropriar e interagir com a arte, através de um jogo que conta com 51 obras do acervo do museu (veja a galeria), descontruídas como em um quebra cabeça. Depois de recomposta, a imagem pode ser compartilhada nas redes sociais, uma maneira de divulgar não só o aplicativo, mas a própria obra de arte.
Para o lançamento do utilitário, o MAM preparou três atividades abertas ao público, que acontecerão na marquise do Parque do Ibirapuera. Os frequentadores do Parque poderão montar quebra-cabeças de obras do acervo do MAM em um cubo-mágico gigante, com adesivos ou com peças em grande formato. Além destas atividades, o MAM vai disponibilizar tablets para que os frequentadores possam entrar em contato com o aplicativo. O evento acontece a partir das 15h30, em frente à escultura “Spider” de Louise Bourgeois.
(MAM Quebra Cabeça / Foto: Divulgação)
O cmais+ conversou com o curador do museu, Felipe Chaimovich, também responsável pela curadoria digital das obras presentes no aplicativo, e que vê na ação “uma das formas que o MAM encontrou para explorar a sua coleção e atrair novos públicos que, não importa onde estejam, terão acesso aos nossos conteúdos e serão capazes de opinar, construir e reconstruir um conhecimento coletivo sobre arte, que são os pilares da missão do museu”. Leia abaixo a íntegra da entrevista.
CMAIS - Muitos museus internacionais já tem aplicativos ou participam do Google Art Project. Qual a importância dessa presença digital para as instituições de arte?
Felipe Chaimovich - As plataformas digitais criam identificação do público com as instituições de arte, ou ampliam essa identificação. O público também é acolhido pelas instituições de arte por meio de campanhas de comunicação em redes sociais e pela oferta de acesso a informação, como a consulta a coleções.
CMAIS - E pensando por outro lado, qual o papel da arte dentro da sociedade em rede?
Felipe Chaimovich - A arte cria situações que demandam a presença real do público, tirando esse público da relação virtual com a cultura.
CMAIS - O aplicativo propõe uma interação maior dos usuários com as obras do acervo do MAM do que outros aplicativos de museu, como o do Louvre. Por que essa abordagem mais lúdica foi adotada?
Felipe Chaimovich - O MAM já possui dois outros aplicativos com diferentes funções, que foram desenvolvidos para as mídias móveis para atingir espectadores que não estão no museu, como o Google Art Project, e para ajudá-los em visitas guiadas dentro do MAM, como os videoguias e audioguias.  Entretanto esses dois aplicativos fornecem conteúdos para o visitante, mas não permitem interação. Por isso, pensamos em um aplicativo mais lúdico que quebre a condição passiva do público para torná-lo ativo, permitindo que o usuário selecione obras que se identifique.
CMAIS - Como o aplicativo do MAM se coloca dentro da estratégia de comunicação do museu?
Felipe Chaimovich - A oferta de ferramentas interativas e a aposta em uma nova linguagem são formas que o MAM encontrou para explorar a sua coleção e atrair novos públicos que, não importa onde estejam, terão acesso aos nossos conteúdos e serão capazes de opinar, construir e reconstruir um conhecimento coletivo sobre arte, que são os pilares da missão do museu. O jogo é uma forma de difundir a coleção do museu, que diferente de outras instituições, não fica permanentemente exposta. O aplicativo permite um diálogo personalizado que promove a participação e fornece informações não só do MAM, mas também da arte contemporânea e moderna brasileira. Essa é apenas uma das ações que o MAM propõe como forma se diálogo com o seu público. Além disso, através de programas educativos, como o Domingo MAM, a instituição tem como proposta levar as atividades culturais para fora do museu e apostar em alguns eixos de atuação que promovem tanto a formação cultural, quanto uma convivência no espaço público.
Mais Informações:
MAM - Museu de Arte Moderna - Av. Pedro Álvares Cabral, S/N - Parque do Ibirapuera - Portão 3

Apple:

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Paul Bloom: conhecemos o bem e o mal desde bebês, mas só a inteligência impede o preconceito

Para o professor de ciência cognitiva da Universidade de Yale, já nascemos com um aparato moral, uma “empatia instintiva”

por Demétrio Rocha Pereira

O psicólogo canadense Paul Bloom teve ocasião, no Fronteiras do Pensamentodesta segunda-feira, de aproveitar o público do Salão de Atos da UFRGS para testar um tanto de teses.

"Devemos confiar não nas emoções, mas na razão", defende Bloom Foto: Ricardo Duarte / Agencia RBS
No telão, um bebê afasta um boneco egoísta e se lança a abraçar um fantoche boa gente, que sabe dividir seus brinquedos com os colegas de pelúcia. Ternura na arquibancada. Depois a tela mostra uma senhora inglesa que, sem dar pelas câmeras que acusam tudo em Londres, decide apanhar um gato na rua e metê-lo na lixeira. Porto Alegre protesta: que barbaridade, que coisa vil!

Paul Bloom: "Até os bebês definem o mundo em termos de nós contra eles":: Veja a programação completa do Fronteiras 2014

— Temos uma capacidade quase perceptual de entender o que é bom e o que é mau — defende Bloom, apresentando experimentos em que bebês "elegeram” personagens solidários contra os antissociais e os “neutros” contra os malvados.

Para o professor de ciência cognitiva da Universidade de Yale, já nascemos com um aparato moral, uma “empatia instintiva” desenvolvida ao longo do processo evolutivo da espécie. É assim que um questionário, 70 anos atrás, descobria que os americanos pediriam duas vezes mais dólares para estrangular um gato do que para deixar alguém lhes arrancar um dente.

— Minha pesquisa está interessada em aspectos da moralidade que sãouniversais, que todos os seres humanos possuem — reitera Bloom, aceitando, por outro lado, que “nossa vida moral é profundamente influenciada pelassituações em que nos encontramos”.

Bloom concede que a biologia não pode explicar por que os juízes de Israel tendem a negar liberdade condicional aos réus quando estão com fome, ou por que o número de assassinatos nos Estados Unidos cresceu subitamente nos anos 1980, ou ainda por que os norte-americanos parecem cada vez menos preconceituosos. Mas isso, em vez de enfraquecer a sua hipótese, é incorporado como prova de que a inteligência deve domesticar o nosso rodapé moral.

Deixada à solta, a empatia instintiva vira ameça de morte à londrina que atirou o gato no lixo ou, para puxar exemplos de cá, o linchamento coletivo do suspeito, o “bandido bom é bandido morto”.

— Temos um impulso poderoso de punir o que vemos como errado. Nossa empatia programada é tragicamente limitada — observa o psicólogo, que detectou nos bebês um ranço irracional contra desconhecidos, nascedouro, por hipótese, de comportamentos como o do racista e o do homofóbico.

Nos testes de Bloom, a gurizada foi tão refratária a estranhos que, ao dividir recursos (fichas de pôquer) com uma criança desconhecida, optava pela pobreza em vez da abundância só para não ver o colega ficar com uma fatia um pouco maior do bolo. Uma solução para esse egoísmo inveterado, diz Bloom, está nas narrativas que nos aproximam do sofrimento do outro.

Se somos indiferentes à manchete que anuncia milhares de mortos em algum lugar distante, sucumbimos, por outro lado, à história isolada de uma das vítimas. Para Bloom, essa alternativa nos conduz pela trilha incerta das emoções, má baliza para a moralidade:

— Devemos confiar não nas emoções, mas na razão. Ficamos mais incomodados quando a internet não funciona do que com a morte de milhares de estranhos. A razão pode passar por cima das paixões, estender a nossa empatia, construir tabus e leis que reprimam nossas emoções. Como não somos naturalmente compassivos com o estranho, vamos sempre precisar de uma força externa para nos tornarmos pessoas boas — completa Bloom.

Se, no início do mês, o físico britânico Geoffrey West aplicou às cidades uma tradução estatística da filosofia de Platão, 20 dias depois o Salão de Atos avançou alguns séculos e assistiu a uma proposta iluminista de reforma do homem pelo império da razão. Ancoradas na crença na ciência, as duas palestras não transcorreram sem aviso prévio. No clipe de apresentaçao do evento, Mia Couto sempre vem dizer, em português de Moçambique:

— O pensamento foi feito para superar essas fronteiras, esses limites. Foi feito para rivalizar com o sonho nessa visitação que nós fazemos ao impossível. Precisamos de uma forma radical de repensar o próprio pensamento.

O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado pela Braskem e tem o patrocínio de Unimed Porto Alegre, Gerdau e Hospital Mãe de Deus. Parceria acadêmica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e parceria cultural de Natura, PUCRS e Celulose Riograndense. Promoção Grupo RBS.

domingo, 28 de setembro de 2014

Três reflexões sobre a Cultura do Automóvel

Por Pablo Babro, em seu blog

Como carecemos de histórias milenares e de longas dinastias que jus­ti­fi­quem os nossos tem­pe­ra­men­tos, nas Américas adotamos desde cedo uma nova mitologia, uma narrativa ori­en­ta­dora que alongamos dos des­co­bri­men­tos e das caravelas: a ideia de que ocupar espaços – em alguns casos, sim­ples­mente transpor espaços – é uma coisa boa, sufi­ci­ente e admirável.
Um obser­va­dor extra­pla­ne­tá­rio terá notado: em algum momento do século 20, espécie humana foi suplan­tada e colocada em sujeição por novo organismo à base de metal e borracha

É a mesma música que rege as entradas dos ban­dei­ran­tes no século dezessete, o avanço dos norte-americanos Oeste adentro no século 19 e a cons­tru­ção de Brasília no século 20. Até hoje, nas Américas, nos con­si­de­ra­mos muito mais ocupantes do espaço do que da história.
Um emblema da paixão con­ti­nen­tal pela narrativa da ocupação do espaço é a nossa relação com o automóvel. O automóvel é ideia popular em todo o mundo, mas foi no Novo Mundo que o alçamos à condição de mito. Na narrativa con­tem­po­râ­nea das Américas, o grande ritual da matu­ri­dade não é casar-se ou entrar no mercado de trabalho; não é ter um filho, comprar uma casa ou matar um tigre: é desenhar com as mãos a cir­cun­fe­rên­cia da direção de um carro, o seu carro.
No Velho Mundo é diferente, mas no Novo ser privado de um carro é ser sim­bo­li­ca­mente privado de autonomia e de poder. Embalados pelo discurso de liberdade do neo­li­be­ra­lismo, vemos um automóvel não como uma máquina que se move sozinha, mas como uma máquina que nos move sozinhos. Como insígnia de autonomia e auto­de­ter­mi­na­ção, a posse de um automóvel nos parece coisa ine­ren­te­mente boa, e um mundo em que cada um tem o seu carro um mundo ajustado e justo.
Permita-me apontar três coisas que a cultura do automóvel pode ter levado você a esquecer.

1. Um carro é uma arma

Num dos manuais de trânsito que os anos me obrigaram a ler está escrito que cada pro­ta­go­nista do trânsito deve sentir-se res­pon­sá­vel pela segurança dos con­du­to­res de veículos que podem causar menor estrago do que o veículo dele. Desse modo, caminhões devem zelar pela segurança de auto­mó­veis, auto­mó­veis devem zelar pela segurança de moto­ci­cle­tas, moto­ci­cle­tas devem zelar pela segurança de bici­cle­tas, e todos devem zelar pela segurança dos pedestres.
Esse cenário me enternece o coração, e depois de vê-lo descrito desse modo nunca consegui pensar no trânsito de uma outra forma. Porém essa bem-desenhada utopia esconde uma lógica brutal: se ela faz sentido é só porque gente armada deve sentir-se logi­ca­mente res­pon­sá­vel pela segurança de gente desarmada.
Mesmo quando falam das mortes no trânsito, as retóricas oficiais procuram evitar esse modo de dizer, mas um automóvel não é menos que uma arma.
Se você precisa de esta­tís­ti­cas que deem peso à com­pa­ra­ção, não tardará a encontrá-las. Dou-lhe três: no Brasil o número de mortes no trânsito cresceu 40% entre 2002 e 2012. Estima-se que em 2014 o trânsito bra­si­leiro vai matar 48.349 pessoas; são 4029 mortes ao mês, 132 mortes por dia, 6 mortes por hora, uma morte a cada 10 minutos. Não somos conhe­ci­dos como um país pouco violento, mas o número de bra­si­lei­ros mortos no trânsito ultra­pas­sou recen­te­mente o número de vítimas de homi­cí­dios – querendo dizer, o esforço acumulado (e nada negli­gen­ciá­vel) de todos os assas­si­nos e todas as armas de fogo do Brasil não consegue matar de modo mais eficaz do que as inte­ra­ções entre seres humanos e veículos acima do asfalto.
Se não estamos habi­tu­a­dos a pensar num automóvel como uma arma é porque não convém à narrativa glit­te­ri­zada propagada pela indústria. Milhões em pro­pa­ganda são alocados no esforço de fazer a sua cabeça e de mantê-la feita. Você sentiria grave des­con­forto se o obri­gas­sem a manusear um revólver carregado, mas sente-se à vontade dirigindo um automóvel. Qual é a diferença?

2. Para reclamar do trânsito basta fazer parte do problema

Não é coisa inédita ver pedestres, ciclistas e usuários do trans­porte público mal­di­zendo os embaraços do tráfego, mas para reclamar com ver­da­dei­ros pro­fis­si­o­na­lismo, paixão e con­sis­tên­cia é preciso ter um automóvel. Só quem tem um carro entende o quanto as agruras do trânsito tolhem o avanço e a mobi­li­dade que nos parecem nossos por direito – queseriam nossos por direito, se o nosso veículo tivesse ocasião de fluir com a liberdade que foi desenhado para ter, a liberdade que nos prometem… os anúncios de automóvel.
O ponto cego dessa equação, natu­ral­mente, está em que os que reclamam com maior sen­ti­mento da amarração do trânsito são os maiores res­pon­sá­veis por ela. Não é que a lentidão do trânsito torna difícil a exis­tên­cia dos pro­pri­e­tá­rios de automóvel; são os pro­pri­e­tá­rios de automóvel que tornam possível a exis­tên­cia da lentidão do trânsito.
O automóvel ultra­pas­sou há muito tempo aquilo que Ivan Illich chama de “segundo divisor de águas” – o momento em que uma solução tec­no­ló­gica que parecia ini­ci­al­mente sensata e con­ve­ni­ente acaba pro­du­zindo os próprios problemas que se dispunha a solu­ci­o­nar. A dis­po­ni­bi­li­dade universal de carros cada vez mais velozes não tornou o trânsito menos lento, não tornou o des­lo­ca­mento mais ágil e não nos deu a liberdade de perder menos tempo no trânsito. Ao contrário: “os veículos acabaram criando dis­tân­cias maiores do que as que ajudaram a cobrir”.
Você reclama do trânsito, mas bastam o seu carro e o carro do seu vizinho Celso para seques­trar o espaço de um ônibus de quarenta lugares (e a mate­má­tica é generosa: um único ônibus de quarenta lugares pode repre­sen­tar quarenta auto­mó­veis a menosentupindo as veias do trânsito). Você escolheu a sua resi­dên­cia para fugir da opressão da cidade, mas acaba criando para si mesmo novas formas de opressão – inclusive o cons­tran­gi­mento de passar mais tempo em trânsito ouvindo Enya do que des­fru­tando da tran­qui­li­dade que você está pagando sua casa para representar.
Essas duas aparentes con­ve­ni­ên­cias – o automóvel que segundo a lenda pode levá-lo a qualquer lugar quando você quiser e a casa “tranquila” longe do trabalho – transmutaram-se em enormes incon­ve­ni­ên­cias, tanto para você quanto para os outros1. O tráfego lento, amarrado e agressivo da vida real é o resultado coletivo do acúmulo de um número incrível de ilusões indi­vi­du­ais. Não será a primeira vez que o capi­ta­lismo terá con­se­guido engodá-lo com a promessa canalha do excep­ci­o­na­lismo, a ideia de que com você vai ser diferente: que você é especial e pode con­tri­buir para saturar um sistema sem ser pre­ju­di­cado pela saturação dele.

3. O automóvel não é a medida das coisas

Um obser­va­dor extra­pla­ne­tá­rio não terá deixado de notar que em algum momento do século 20 a raça humana foi suplan­tada e colocada em sujeição por uma nova espécie de organismo à base de metal e borracha.
Os auto­mó­veis evoluíram rápido: em poucas décadas já usavam os seres humanos para se alimentar, para repor membros com­pro­me­ti­dos, para curar doenças cir­cu­la­tó­rias e – acima de tudo – para se mul­ti­pli­car em ritmo espantoso. Os seres humanos sujei­ta­ram a terra por muitos milhares de anos, mas a população de auto­mó­veis (que há cem anos pra­ti­ca­mente não existia) em algumas regiões do planeta já ultra­pas­sou a população de homo sapiens. E, não havendo vacina conhecida, ninguém sabe quando os auto­mó­veis vão parar de usar seres humanos para se multiplicar.
Ini­ci­al­mente, os carros usaram os seres humanos para locomover-se de um lugar para outro, mas logo sua postura tornou-se mais agressiva. Através do controle da mente, os auto­mó­veis con­ven­ce­ram as pessoas a transfor­mar radi­cal­mente as suas próprias cidades e vias de acesso – tornando-as aco­lhe­do­ras para auto­mó­veis, mas intei­ra­mente hostis para os seres humanos insub­mis­sos que insis­tis­sem em deslocar-se a pé. Planícies férteis e riachos mais velhos do que a huma­ni­dade foram aplai­na­dos em esta­ci­o­na­men­tos – enormes praias de concreto sem mar, feias, áridas, impro­du­ti­vas e des­fa­vo­rá­veis a toda vida orgânica – só para fornecer aos novos senhores do mundo um habitat. E, como sinal decisivo da supre­ma­cia dos auto­mó­veis, os seres humanos apren­de­ram a desejar que houvesse um esta­ci­o­na­mento nos lugares em que não encontram habitat favorável para o automóvel do qual são hospedeiros.
Para se entender por completo a extensão dessa lavagem cerebral é preciso pisar um lugar que tenha sido poupado dos seus efeitos: visitar uma cidade medieval europeia (de pre­fe­rên­cia na Itália, onde as gerações resistem mais tei­mo­sa­mente a des­fi­gu­rar as feições da história). Cidades como Siena, Assis e Mon­te­pul­ci­ano (e uma infi­ni­dade de outras menos conhe­ci­das) oferecem uma pers­pec­tiva que no Novo Mundo eli­mi­na­mos ou des­co­nhe­ce­mos: uma paisagem urbana intei­ra­mente desenhada com o homem como medida. Tudo na cidade medieval foi projetado para o deleite de pés e de olhos humanos: as dis­tân­cias entre um lugar e outro, a largura das vias, a oferta de lojas e serviços, a gentil curvatura das ruas, a pers­pec­tiva dos arcos, o abrigo das colunatas, a dis­po­si­ção de praças e igrejas e monu­men­tos. Tudo pode ser per­cor­rido a pé e para ser per­cor­rido a pé foi concebido; tudo que leva o nome de humano divide sem com­pe­ti­ção o mesmo espaço vital: comer­ci­an­tes e resi­dên­cias, artesãos e serviços públicos, mercados e igrejas, escolas e museus, res­tau­ran­tes e fontes de água. Pra­ti­ca­mente não há lugar para esta­ci­o­nar porque, natu­ral­mente, ninguém previu e ninguém deveria ter de prever um espaço que não seja para gente.
Hoje em dia você encontra um carro ou outro nessas cidades medievais, mas são pouco numerosos e são pequenos – e não há quem não entenda que são os auto­mó­veis os estranhos naquele ambiente. Em com­pa­ra­ção, tudo nas metró­po­les bra­si­lei­ras é hostil aos homens e acolhedor para os auto­mó­veis. Há curiosos indícios de que nos horários de pico a forma mais rápida e eficiente de deslocar-se dentro da metrópole é a pé, mas essas indi­ca­ções não são usadas para corrigir a realidade: nada na cidade grande é feito pensando em priorizar a expe­ri­ên­cia dos pedestres.
Quem precisa ter medo de um levante de robôs e de inte­li­gên­cia arti­fi­cial, quando sem a inter­ven­ção desses fatores já nos mostramos dispostos a alterar a face do mundo em favor das máquinas? É assim: a medida das coisas deixou de ser o homem e passou a ser o automóvel. Basta pisar uma cidade grande sem o apa­dri­nha­mento de um veículo para entender o status secun­dá­rio do ser humano na paisagem urbana. Quem está a pé está sozinho contra uma multidão armada.

sábado, 27 de setembro de 2014

Carta de Brasília, um manifesto do cinema brasileiro

Cena de "Branco Sai, Preto Fica", de Adirley Queirós, escolhido pelo júri como melhor filme do 47º Festival de Brasília
Cena de “Branco Sai, Preto Fica”, de Adirley Queirós, escolhido pelo júri como melhor filme do 47º Festival de Brasília
Criadores das obras que concorreram ao festival mais antigo do país defendem diálogo entre arte e sociedade, ao anunciar decisão inédita de dividir prêmio
Carta de Brasília
Diretores, produtores(as) e outros(as) integrantes das equipes dos longas-metragens que compuseram a competição da 47ª edição do Festival de Brasília vêm aqui expressar alguns pontos de reflexão em torno de sua participação no evento. Consideramos que:
1. A escolha de um panorama de filmes tão diversificado, onde cada obra se sedimenta sobre propostas estéticas singulares, resultou na criação, durante os dias do evento, de um terreno muito fértil e propenso à troca, ao debate, ao aprendizado e ao amadurecimento de questões ligadas ao cinema e à sociedade brasileira.
2. O cultivo de um terreno assim favorável à circulação de ideias deve ser, no nosso entendimento, horizonte para qualquer evento destinado a promover avanço do cinema e seu diálogo com o público no país.
3. No entanto, o valor atribuído ao prêmio de melhor longa-metragem, totalizando R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais), representa uma disparidade em relação aos valores distribuídos pelos demais prêmios, contribuindo para a criação de um clima de competitividade exacerbada entre os filmes e seus representantes.
4. Os signatários desta carta não se opõem ao caráter competitivo do festival e tampouco questionam a soberania da escolha do júri, que este ano indicou o filme Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós, como melhor longa-metragem.
5. Mas, desconfortáveis com a concentração dos recursos num único prêmio, os(as) diretores, produtores(as) e integrantes das equipes dos longas, decidimos, antecipadamente e por unanimidade, dividir o valor de R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais) em seis partes iguais que serão distribuídas entre os filmes que estiveram em competição.
6. O gesto proposto pelos realizadores este ano serve como sugestão de uma partilha futura dos recursos hoje concentrados no prêmio de longa-metragem. Entendemos que uma distribuição da verba entre os filmes, a título de pagamento de direitos de exibição, associada a um prêmio em dinheiro para o melhor filme, representaria uma forma mais isonômica de emprego do valor.
Assinam os(as) diretores, produtores(as) e integrantes das equipes dos filmes:
Branco Sai, Preto Fica
Brasil S/A
Ela Volta na Quinta
Pingo D’Água
Sem Pena
Ventos de Agosto
Imagem da Carta de Brasília
Imagem da Carta de Brasília

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Do direito a tornar-se adulto com dignidade

Ideologia dominante convida: após a juventude, aceitemos o capitalismo como inevitável. Para resistir, é preciso compreender que o possível não se resume ao real

Por Nuno Ramos de Almeida | Imagem: Adrien Dewisme, Vanité 2/3

Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós”
Natália Correia

Há um texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano em que ele confessa a humilhação que sofre no barbeiro por lhe cobrarem apenas meio corte. Não acreditando no ditado de que é dos carecas que elas gostam mais, Galeano deixa cair uma frase que lhe alivia um certo sentimento de inferiorização diária: “Se o cabelo fosse importante, estaria dentro da cabeça e não fora”, e logo acrescenta convictamente: “Consolo-me comprovando que em todos esses anos caíram muitos de meus cabelos mas nenhuma das minhas ideias, o que é uma alegria quando penso em todos esses arrependidos que andam por aí.”

Há uma raça de pessoas que normalmente cita, como atestado de bom comportamento, a famosa frase de recorte autobiográfico atribuída ao ex-chanceler alemão Willy Brandt de que “quem aos vinte anos não é comunista não tem coração e quem assim permanece aos quarenta não tem inteligência”.

No fundo cresceríamos com a idade. O processo de um tipo se tornar adulto passaria por uma juventude em que começamos por não aceitar o mundo tal qual existe com todas as suas gritantes injustiças, e sobretudo acharíamos que temos forças para tudo mudar. A esse estado suceder-se-ia o choque da realidade, o bom senso e o crédito à habitação e as prestações dos eletrodomésticos, de tal maneira que aos 40 saberíamos que temos de aceitar “as coisas” e tentar viver da forma mais confortável no melhor dos mundos possíveis.

Exemplo radical deste tipo de conversão à realidade existente é, e Portugal, o de uma cáfila de maoístas como Durão Barroso, que passaram de gritar loas à revolução e a um grande líder qualquer a gritar vivas ao mercado e a servi-lo pelo maior ordenado possível, dizendo para isso o disparate mais gigantesco para provar a conversão.

Neste processo de chegada à idade adulta não faríamos mais que aceitar as nossas inevitáveis limitações e preparar-nos para viver a realidade. A ideologia dominante não faria mais que assegurar que este capitalismo e este mundo estariam aqui para sempre. E, como a cultura popular e os maus filmes de ficção científica demonstram, é mais fácil imaginar uma grande catástrofe que destruísse o planeta, ou mesmo uma invasão de extraterrestres, que a simples mudança de um regime e modo de produção injusto, que desperdiça recursos e destrói o planeta. O capitalismo será, segundo este pensamento que pretendem coagir-nos a aceitar, a realidade que sobreviveria ao fim mesmo de toda a realidade: as máquinas automáticas venderiam Coca-Cola mesmo que os seres humanos desaparecessem para as consumir.

Neste horizonte inultrapassável estaríamos sempre condenados a escolher entre políticos tão excitantes e diferentes como António José Seguro, António Costa e Passos Coelho.

O nosso principal problema está nessa mesma aceitação da realidade como elemento estruturante do possível. Se consideramos que viveremos sempre num regime de banqueiros, em que os lucros têm eles e os prejuízos pagamos nós; se achamos inevitável ficarmos com uma democracia em que, independentemente do nosso voto, os políticos fazem o que lhes apetece; se transigimos com a continuação de um regime de corrupção “normal”, em que o contribuinte paga os contratos ruinosos que os políticos assinam com grupos com quem vão depois trabalhar; então temos a realidade que merecemos e vamos deixá-la em herança aos nossos netos.

A existência de situações de injustiça não decorre de sermos adultos, mas de sermos parvos.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Era das vanguardas: Instituto Goethe apresenta exposição que destaca a relação da Bauhaus com a fotografia

Em cartaz até 1º de novembro em Porto Alegre, mostra reúne 50 fotografias e trechos de filmes do Museu de Design de Berlim e da Fundação Bauhaus Dessau
por Francisco Dalcol / ZH

A influência da Bauhaus é amplamente reconhecida na história da arquitetura e do design no século 20. Menos conhecida é a relação que seus integrantes estabeleceram com a fotografia em uma época em que essa técnica ainda não havia sido assimilada totalmente como linguagem artística.

É esse o tema de bauhaus.foto.filme, em cartaz até 1º de novembro no Instituto Goethe de Porto Alegre. A exposição, que já passou pelo Sesc Pinheiros, em São Paulo, e pelo Oi Futuro, no Rio, reúne 50 fotografias e filmes pertencentes ao Museu de Design de Berlim e à Fundação Bauhaus Dessau, onde estão os mais importantes acervos da escola alemã de design. Embora seja uma mostra de proporções reduzidas, e com imagens apenas em médio formato, vale a visita por oferecer um breve passeio ao ambiente vanguardista da Alemanha nos anos 1920.
Banda musical de alunos da escola que faziam improvisações e se inspiravam no jazz americano
Foto: Bauhaus-Archiv / Instituto Goethe,Divulgação

A Bauhaus foi fundada em 1919, em Weimar, como uma escola de arquitetura e design. Fruto do espírito moderno da época, buscou aliar arte e funcionalidade com produtos em série voltados às novas necessidades de uma sociedade urbana em crescimento. Em 1925, foi transferida para Dessau, onde funcionou até ser fechada em 1932 pelo conselho nacional-socialista da cidade. Mudou-se para Berlim e teve sua trajetória interrompida pelos nazistas em 1933.bauhaus.foto.filme apresenta uma seleção de fotografias que mostram o cotidiano de uma escola que buscou se inserir na arena dos movimentos de vanguarda da Europa - futurismo, dadaísmo, surrealismo e os outros "ismos" que hoje formam o conjunto da história da arte da primeira metade do século 20.

São três os vetores da exposição. Um deles contempla a fotografia como registro de peças e projetos, desde fachadas de prédios até móveis e utensílios domésticos. Destaque para a casa geminada dos então professores Paul Klee e Wassily Kandinsky. A outra série traz retratos de mestres e alunos. Por fim, a memória coletiva é exaltada com imagens que documentam o convívio nas aulas, no refeitório, nas sessões de ginástica e nos momentos de diversão, indicando que o espírito de grupo inspirava o ambiente que projetou a Bauhaus ao mundo.

No conjunto, chamam atenção os experimentos com luz e enquadramento, além dos modos de revelação e montagem, indicando que a fotografia, com o advento das câmeras portáteis, e o cinema foram ferramentas criativas para os jovens arquitetos e designers.

bauhaus.foto.filme
> Exposição de fotos e filmes produzidos por professores e alunos da escola de design alemã Bauhaus.
> Instituto Goethe (24 de Outubro, 112), em Porto Alegre, fone (51) 2118-7800. De segunda a sexta, das 10h às 20h. Sábado, das 10h às 16h. Até 1º/11

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Mudança climática: e após a grande marcha?

Em Nova York, onde chefes de Estado estão reunidos, a maior manifestação do domingo: mais de 300 mil pessoas nas ruas

Mobilização de centenas de milhares, em dezenas de cidades, revela que tema pode popularizar-se. Mas como superar dificuldade de obter vitórias concretas?


Por George Marshall, no The Guardian | Tradução: Cauê Ameni e Inês Castilho / Outras Palavras



Ao se encontrarem esta semana na ONU, em Nova York, os líderes mundiais vão enfrentar intensa pressão para agir. A descoberta de que a Coreia do Norte vem, secretamente, despejando na atmosfera gases venenosos, numa tentativa de destruir a produção agrícola dos Estados Unidos, detonou uma crise internacional.

Isso não é verdadeiro, claro. Há, de fato, uma reunião de cúpula iniciada terça-feira (23/9), promovida pelo secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon para debater a perigosa desestabilização climática. É uma ruptura que pode mesmo levar ao colapso muitas das principais regiões agrícolas do mundo. Mas, já que se trata somente do velho e maçante aquecimento global, assunto que parcelas do público parecem achar menos interessante que ver tinta secar na parede, os políticos não se preocupam muito com a necessidade de prestar contas…
Em Nova York, trinta quarteirões tomados por 310 mil pessoas

Então, por que acreditar que o cenário norte-coreano levaria a uma rápida mobilização política, enquanto a grande ameaça que realmente enfrentamos irá gerar apenas promessas vazias? Por que o primeiro acelera nosso pulso, e o último leva apenas à indiferença generalizada? Isso levanta uma questão mais ampla sobre nossa própria psicologia: por que razão a maioria das pessoas entende que as mudanças climáticas são uma grande ameaça e, no entanto, quando chamadas a apontar o maior perigo para a civilização, parecem incapazes de trazer isso à mente?

A primeira razão é que nosso senso inato de competição social tornou-nos muito alertas a qualquer ameaça trazida por inimigos externos. Em experiências, crianças de não mais que três anos podem notar a diferença entre um acidente e um ataque deliberado. As mudanças climáticas confundem o centro desta fórmula moral: são um crime perfeito e indetectável, para o qual todos contribuem mas ninguém tem uma motivação.

Não há um “outro” a quem culpar. Estamos apenas vivendo nossas vidas: levando as crianças à escola, desfrutando do conforto do ar condicionado, colocando comida na mesa. Quando enxergamos o aquecimento global como ameaça, esses atos banais tornam-se intencionalmente perigosos. Por isso, recusamo-nos a tomar consciência, ou reagimos com raiva e ressentimento.

Pior: diversos fatores ligados às mudanças climáticas dissuadem o engajamento de nossos cérebros. São necessários sacrifícios pessoais imediatos, para evitar danos coletivos vistos como incertos e localizados num futuro distante. O psicólogo cognitivo Daniel Kahneman, vencedor do Nobel por seus estudos sobre o quão irracionalmente respondemos a tais questões, suspirou profundamente quando lhe pedi para avaliar nossas chances: “Desculpe”, disse ele, “estou profundamente pessimista. Não consigo ver um caminho para o sucesso.”

Pequena manifestação em Bangladesh. Rios sujeitos a cheias, altíssima densidade populacional e pobreza fazem do país um dos mais vulneráveis do mundo ao aquecimento global

Eu concordaria com ele se as mudanças climáticas fossem de fato incertas, demandassem custos impossíveis e estivessem previstas para um futuro remoto. Elas podem facilmente parecer assim, se esta for a intenção de nossa narrativa. Contudo, muitos economistas, tais como Nicholas Stern e Hank Paulson, ex-secretário do Tesouro dos EUA, veem o assunto de outro modo. Da mesma forma que os 310 mil manifestantes que lotaram trinta quarteirões de Manhattan, neste domingo, e outras dezenas de milhares, em muitas cidades do mundo. Para estes, as mudanças climáticas são reais, estão acontecendo agora e podem ser combatidas. O verdadeiro obstáculo – simbolizado nas manifestações de Nova York por uma memorável boia representando um polvo de 15 metros de comprimento – é a indústria de petróleo e gás e seus tentáculos de influência política.

E aqui reside o desafio real. As mudanças climáticas podem ser qualquer coisa que se queira. Podem acontecer aqui ou ali, no presente ou no futuro, certo e incerto. Parece que as vemos como uma ameaça – e somos, portanto, capazes de aproveitar essa reação inata ao inimigo externo – apenas se elas forem construídas nos moldes de nossas histórias familiares, com seus heróis e vilões.

Por isso, meus colegas que advogam por ação imediata criaram esta narrativa de inimigo, com personagens dramáticas do nosso passado de lutas – políticos corruptos, executivos malignos, banqueiros gordos, jornalistas preguiçosos, advogados escorregadios e um público apático. Enquanto isso, contudo, nossos adversários estão espelhando nossas ações. Quando me encontrei, numa noite barulhenta, com membros do Tea Party no Texas, eles disseram, em linguagem previsivelmente vulgar, que os verdadeiros inimigos são os ambientalistas de esquerda; e que inventamos essa fraude para estender o controle dos governos sobre as sociedades. Como a maioria dos conservadores, eles não conseguiram enxergar que as próprias mudanças climáticas representam uma ameaça aos seus valores, liberdades e propriedade.

Esta tendência de confundir os fatos das mudanças climáticas com narrativas construídas por eles próprios é igualmente comum entre os políticos. Posso prever com segurança que os governantes reunidos em Nova York irão enfatizar a necessidade urgente de controlar os gases de efeito estufa, mas permanecerão mudos sobre o US$ 1 trilhão gasto, anualmente, para que novas reservas de combustíveis fósseis passem a ser exploradas. Em 25 anos de negociações, jamais foi discutida uma medida sequer para controlar a produção de combustíveis fósseis. Isso não tem espaço na narrativa oficial.
Protesto na Nova Zelândia: Convocadas a partir de um chamado do grupo 350.org, ações de domingo espalharam-se por dezenas de cidades em todo o mundo

O público em geral também tem lacunas e pontos cegos. A maioria das pessoas nunca discutiu as mudanças climáticas fora do seu círculo familiar imediato. Um terço não se lembra sequer de ter discutido isso alguma vez na vida. E, contra-intutivamente, traumas relacionados ao clima parecem tornar as pessoas ainda mais reticentes. Falando com as vítimas do furação Sandy e com os texanos vítimas da seca e incêndios florestais de 2011, não encontrei ninguém que recordasse ter tido uma conversa recente sobre mudanças climáticas com um vizinho. Comunidades abaladas pelas mudanças climáticas, ao que parece, encontram força na esperança de recuperação e suprimem ativamente qualquer discussão desanimadora sobre causas subjacentes ou ameaças futuras.

Por isso, se quisermos realmente produzir mobilizações relacionadas às mudanças climáticas, é fundamental reconhecermos que há, além dos fatos científicos, os fatos sociais. Estes, que incluem as narrativas construídas e o silêncio deliberado, são muito mais potentes. E criam – reforçados por nossa necessidade inata de estar em conformidade com a norma em nosso grupo social – as bases sobre as quais aceitamos, negamos ou ignoramos o problema.

Vista por esse ângulo, a situação está longe de ser desesperadora. Como os ciclos que regem os sistemas globais de energia e carbono, as atitudes do público estão sujeitas aos efeitos positivos das respostas que podem amplificar pequenas mudanças e resultar em rápidas guinadas. Grandes protestos com visibilidade e aumento da cobertura midiática podem romper o silêncio sobre as mudanças climáticas e criar um engajamento mais amplo. Acima de tudo, porém, é preciso reconhecer que a narrativa que escolhermos irá moldar os acontecimentos a partir de agora. Podemos continuar retornando à nossa necessidade de ter um inimigo. Mas a melhor história seria a de um propósito comum, construída em torno de nossa humanidade compartilhada.
Sindicalistas relacionam mudança climática ao desmonte dos sistemas públicos de Saúde. Em Nova York, marcha teve intensa participação de trabalhadores organizados

George Marshall
George Marshall é o fundador do Climate Outreach Information Network e autor de Nem pense nisso: porque nossos cérebros estão conectados a ignorar a mudança climática. Ele bloga em www.climatedenial.org

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Fotografia: oficina de daguerreótipos ensina técnica oitocentista com alta definição

Brasileiro que está entre os 30 daguerreotipistas contemporâneos em atividade no mundo reúne grupos em Lumiar, Rio de Janeiro

Rita Albuquerque, do cmais+ | fotos Ricardo Abrahão Arte & Cultura


A daguerreotipia, uma técnica de fotografia oitocentista desenvolvida por Louis Jacques Mandé Daguerre, surpreendeu o mundo por sua capacidade de reproduzir a realidade, apresentando uma definição jamais superada por outro processo.

Trata-se de uma placa maciça de cobre banhada em prata, a qual é inserida na câmera fotográfica. Segundo Francisco Moreira da Costa, brasileiro que está entre os 30 daguerreotipistas contemporâneos em atividade no mundo, ao passo que a fotografia é feita, a luz bate nessa chapa e entra em contato com os sensíveis haletos de prata submetidos ao procedimento.

O especialista explica que quando combinadas com o mercúrio, essas substâncias constituem o pó formador da imagem. “A figura fica latente e é revelada na superfície da placa, que guarda esse reflexo. O resultado de altíssima definição é visto nitidamente quando próximo à luz. Depois, é preciso fazer um sanduíche com dois vidros capazes de encapsular o resultado obtido para não oxidar”, descreve.

Francisco estuda a daguerreotipia desde 1996. Apenas cinco anos depois do início, em 2001, montou o Estúdio Século XIX, no distrito de Lumiar, a 160 km do Rio de Janeiro. Ele conta que a vontade de aprender o método de 1839 surgiu em Nova York. “Lá, trabalhei em um ateliê e fiquei encantado com o que os profissionais da área faziam. Voltei para o Brasil em meados de 1989 e depois de alguns anos passei a investir nisso. Montei laboratórios segmentados em busca de qualidade”.

A complexidade do processo incentivou o carioca a receber interessados em seu estúdio. "Para mim, repassar o conhecimento é uma forma de aprender ainda mais, de ter controle do que eu faço”, e completa, "o resultado depende integralmente do operador, porque cada etapa exige habilidade e cuidado. A química utilizada é perigosa, pode até queimar e/ou envenenar “.

Nas oficinas que promove, ele reúne grupos de até oito pessoas de sexta-feira à noite até domingo à tarde, quando todos são liberados. “Depois das aulas práticas, nós jantamos em volta da fogueira e tomamos sopa e vinho. No café da manhã faço questão de oferecer alimentos caseiros e regionais, como mel e queijos. É um tipo de albergue que já recebeu médicos, psicólogos, atores, jornalistas e outros”, fala
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segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Fotografia: Mario Testino resgata o que há de melhor em cada indivíduo

A modelo e apresentadora Carol Ribeiro visitou a exposição 'In Your Face', em cartaz na FAAP.

por Cmais+



Mario Testino resgata o que há de melhor em cada indivíduo

domingo, 21 de setembro de 2014

Quem devasta as florestas brasileiras

Estudo internacional sugere: desmatamento caiu 70% na última década, mas ainda é o mais grave do mundo. Agronegócio é responsável por 90% da devastação ilegal

Na Deutsche Welle



Entre 2000 e 2012, a agropecuária foi responsável por metade do desmatamento ilegal nos países tropicais. No Brasil, até 90% da derrubada ilegal da floresta neste período ocorreu para dar lugar ao gado e à soja. Os números fazem parte de um estudo da organização Forest Trends, divulgado em 11/09.
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Segundo o relatório da ONG americana baseada em Washington, as situações mais críticas foram registradas no Brasil e na Indonésia. No Brasil, parte considerável dos produtos cultivados nessas áreas ilegais vai para o mercado externo: até 17% da carne e 75% da soja. Os destinos incluem Rússia, China, Índia, União Europeia e Estados Unidos.

Brasil e Indonésia são os maiores produtores do mundo de commodities agrícolas para a exportação. O que é colhido nas terras desmatadas ilegalmente nesses países vai parar em cosméticos, produtos domésticos, alimentos e embalagens.

“Naturalmente, os países compradores também são responsáveis. Afinal, eles estão importando e consumindo produtos sem prestar atenção em como foram produzidos. Consequentemente, estão criando uma demanda. E as companhias envolvidas no negócio estão lucrando”, avalia Sam Lawson, principal autor do estudo e consultor de instituições como o Banco Mundial e Greenpeace. Ele calcula que esse tipo de comércio gere uma receita de 61 bilhões de dólares, cerca de 140 bilhões de reais.

A pesquisa foi feita ao longo dos últimos três anos e reuniu dados publicados em mais de 300 artigos científicos, informações da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e dados de satélite.

Ilegalidade no Brasil

Ao mesmo tempo em que o estudo aponta o Brasil como líder nesse tipo de ilegalidade, ele reconhece que o país reduziu dramaticamente o desmatamento desde 2004. A taxa de derrubada ilegal na Amazônia caiu mais de 70% se comparada aos índices medidos entre 1996 e 2005.

“No Brasil, as florestas também estão dentro de propriedades privadas. E, em muitos casos, o único documento que o produtor rural tem para justificar sua plantação é um certificado de posse da terra. Eles não têm, necessariamente, a permissão para cortar a floresta para dar lugar a essa plantação”, diz Lawson.

Francisco Oliveira, diretor do Departamento de Políticas de Combate ao Desmatamento na Amazônia, do Ministério de Meio Ambiente, diz que a apropriação irregular de terras públicas, ou “grilagem”, é uma das principais causas do desmatamento ilegal. “Um grileiro nunca vai buscar uma autorização de desmatamento”, acrescenta.

O corte da mata também é feito por proprietários regulares de terra. Mas nem todos respeitam a lei: muitos retiram a vegetação nativa para expandir plantações sem a devida autorização, que é dada pelo governo estadual. Para aumentar o rigor na fiscalização, o governo federal pretende exigir que os estados repassem as autorizações de supressão de vegetação concedidas aos proprietários.

A legislação nacional obriga as propriedades rurais privadas a manter no mínimo 20% da vegetação natural, a chamada Reserva Legal. Por outro lado, ainda não existem dados oficiais que mostrem quem cumpre a lei. A esperança de separar “o joio do trigo” está no Cadastro Ambiental Rural (CAR), introduzido com o novo Código Florestal para ajudar no processo de regularização.

Esse cadastro tem que ser feito por todo proprietário e trará informações georreferenciadas do imóvel, com delimitação das Áreas de Proteção Permanente, Reserva Legal, entre outros. “A pessoa sabe que entrou para um sistema e vai tomar os devidos cuidados para não desrespeitar a legislação, e quer ser respeitada por isso”, analisa Oliveira.

Comida e floresta para todos

Cinco campos de futebol de florestas tropicais são destruídos a cada minuto para suprir a demanda por commodities agrícolas. A FAO também vê esses números com preocupação. A organização estima que, até 2050, o mundo precisará de cerca de 60 milhões de hectares extras para suprir a demanda por comida.

Para Keneth MacDicken, especialista em assuntos florestais da FAO, seria possível fazer essa expansão sem agredir as florestas. “Aumentar a produtividade, melhorar as técnicas e diminuir o desperdício são fundamentais”, diz.

Para acabar com a produção agropecuária em terras desmatadas ilegalmente, é importante mostrar que a legalidade é rentável. “Nesse processo, empresas como a Embrapa são muito importantes. Porque elas ajudam os proprietários rurais a produzir de forma mais eficiente e mais rápida”, exemplifica MacDicken.

Além do aumento na fiscalização e vigilância por satélite, Oliveira, do ministério de Meio Ambiente, aposta na parceria com produtores para mostrar que o consumidor também está ficando mais exigente. “Os compradores de soja no mercado internacional não estão querendo atrelar o nome ao desmatamento ilegal na Amazônia.” Essa percepção criou a chamada “moratória da Soja”, em que produtores se comprometeram a não estender o cultivo para áreas desmatadas.

Lawson só vê uma saída: “Nada vai funcionar se os governos não tomarem providências contra a ilegalidade”. O pesquisador admite que, hoje, o tema é mais discutido entre produtores e consumidores do que há dez anos. No entanto, se os números do desmatamento associado à expansão da agropecuária ainda são altos, a conclusão é que “esse combate ainda não está sendo feito como deveria”.

sábado, 20 de setembro de 2014

Inspirado em clássicos, O doador de memórias” retoma distopia do controle social absoluto. É algo indispensável, em tempos de NSA e internet vigiada
Por Elenita Malta / Outras Palavras
Quem controla o passado, controla o futuro.Quem controla o presente, controla o passado.George Orwell, em 1984
O instigante O doador de memórias chega às telonas na esteira de blockbusters juvenis, como Jogos Vorazes e Divergente, distopias sobre jovens que se rebelam contra as sociedades em que vivem. No entanto, não é mera cópia ou versão desses filmes anteriores, até porque ele se baseia no premiado livro The giver (O doador), publicado pela escritora norte americana Lois Lowry, em 1993. Retomando elementos das famosas distopias escritas na primeira metade do século XX, 1984 (George Orwell) e Admirável Mundo Novo (Aldoux Huxley), o filme aborda com profundidade questões importantes da existência humana.
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Narrada do ponto de vista do personagem juvenil Jonas (Brenton Thwaites), a história começa em preto e branco, e, à medida que o garoto toma consciência do funcionamento de seu próprio mundo, vai ganhando cores. Inicialmente, todos veem em preto e branco, escolha do diretor Philip Noyce para ressaltar a “mesmice” do local onde vivem.
A comunidade” onde Jonas mora com sua família é uma das tantas que formam um mundo totalmente controlado. As pessoas não têm livre arbítrio; até mesmo suas profissões são escolhidas por um grupo de anciãos. Estes decidem qual seria a melhor contribuição de cada um para a comunidade. Tal mundo é liderado por uma mulher (Meryl Streep), que tem a pretensão de estar em todos os lugares ao mesmo tempo para que nenhuma mudança aconteça. Ali não há guerras, dores nem tristezas, mas também as alegrias e as paixões não estão presentes. As angústias e os prazeres foram suprimidos tempos atrás, para a manutenção de um sociedade harmônica e seus cidadãos “felizes”.
Assim como na “teletela” de 1984, as pessoas são vigiadas constantemente,desde a infância, por câmeras – dispositivos onipresentes nas comunidades. Os atos de todos são seguidos 24 horas por dia. Antes de sair de casa (a “unidade familiar”), cada um precisa tomar sua “injeção matinal”, que lembra o “soma”, a droga diária de Admirável mundo novo. Dopados o dia inteiro, são incapazes de sentir emoções que possam afetar o equilíbrio da comunidade. Também não há livros, pois são muito perigosos: poderiamdifundir ideias diferentes das repetidas pelo sistema, e causar rebelião. Nesse ponto, lembra o romance Fahrenheit 451 (Ray Bradbury) e sua queima de livros, outra distopia pós-II Guerra Mundial.
Nesse mundo perfeito, não há toque e não há sexo – os bebês são fabricados geneticamente. As pessoas não sabem o que é sentir amor (como em 1984 e Admirável mundo novo).
A falta de liberdade interfere também no modo de falar da comunidade. Como a “novilíngua” criada por George Orwell, em O doador de memóriasos habitantes se preocupam com a “precisão de linguagem”, uma forma de falar que elimina referências a sentimentos e emoções. É na “precisão de linguagem”, na vigilância e na supressão das memórias que se alicerça esse mundo totalitário.
As memórias foram surrupiadas da população e concentradas em apenas uma pessoa, o “doador”, interpretado por Jeff Bridges (que também é um dos produtores do filme). Ele, com suas dores e alegrias, é o guardião da memória coletiva. Quando Jonas recebe a designação de “receptor”, passa a ser dele o dever de carregar as memórias dentro de si. À medida que Jonas vai conhecendo o passado, seu olhar sobre o mundo vai mudando, e ele passa a enxergar as cores que os demais não podem ver.
O controle das memórias é o ponto chave do filme, é o que possibilita a apatia das pessoas. Elas aceitam que seus direitos, lembranças e senso moral sejam suprimidos. Esse apagamento mnemônico retira o sentido ético das pessoas no momento de suas escolhas, pois com ele perde-se também qualquer tábua de valores. Sem a referência do passado, como podemos saber se agimos de forma certa ou errada? Provocar a morte de alguém, num mundo como esse, pode ser algo correto e inquestionável, porque você não tem como dimensionar seus próprios atos.
E essa é a maior semelhança de O doador de memórias com 1984. Como escreveu George Orwell, “quem controla o passado, controla o futuro”. Também o historiador Jacques Le Goff, em seu livro História e Memória, referiu-se à importância desse controle: “tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva”. A história e a memória são instrumentos poderosos que podem mudar a vida das pessoas. Seu conhecimento pode levar tanto a guerras e genocídios, quanto a conquistas de liberdade no plano social ou individual. O passado é muito perigoso para sociedades totalitárias, que querem controlar cada passo do indivíduo.
Recentemente, o mundo assombrou-se com o esquema de vigilânciainternacional da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (National Security Agency, ou NSA), revelado pelo analista Edward Snowden. Nem pessoas comuns, nem autoridades escaparam de serem espionadas. De certa forma, já estamos vivenciando uma demo do que seria um mundo vigiado pelo “big brother” de 1984. Ainda que não haja teletelas nem anciãos seguindo nossos passos, ou injeções matinais obrigatórias, nossos movimentos na internet não são privados. Embora a desculpa seja a garantia da segurança nacional, ou mesmo a oferta de produtos compatíveis aos nossos gostos e necessidades, isso, por si só, já é uma forma de controle indevido.
Indo além da pura diversão, distopias como O doador de memórias são alertas contra um mundo totalmente controlado, em que o poder de decisão e as escolhas seriam retirados dos cidadãos e transferidos aos “líderes”. O filme pode ser o ponto de partida para interessantes debates nas escolas, com o público juvenil, sobre livre arbítrio, cidadania, invasão de privacidade, a importância da história e da memória para as sociedades e, sobretudo, as ameaças do totalitarismo. Na verdade, esses temas sempre deveriam estar presentes nas discussões de jovens de todas as idades. Através da distopia, o filme nos passa a mensagem de que a construção de um mundo livre e igualitário é possível. Essa sim é a utopia a ser perseguida.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Sobre as ciclofaixas de SP e as “ameaças” de Marcelo Tas

Humor forçado do comediante expressa mentalidade de uma elite incapaz de se desapegar tanto do automóvel quanto de sua velha noção de cidade para poucos

Por Alexey Dodsworth Magnavita, em seu perfil no Facebook

Esta é a foto de minha mão direita aberta. Da ponta do mindinho até a ponta do polegar, ela mede vinte centímetros. A maioria das mãos, não importa as diferenças entre elas, sejam de homens ou mulheres, tem medidas similares: 20 cm da ponta do mindinho à ponta do polegar, quando espalmadas. Guarde esta informação. Retornarei a ela mais adiante.
Recentemente, numa discussão tuiteira, o comediante Marcelo Tas criticou o programa eleitoral do candidato à presidência, Eduardo Jorge (PV). Em sua propaganda, Eduardo Jorge recomenda às pessoas que usem menos os carros.

Ao que parece, Tas entendeu que o candidato havia dito para as pessoas não usarem carros. Entendeu errado, e este tipo de coisa acontece. Após disparar uma ironia contra Eduardo Jorge, perguntando como fariam as pessoas que não têm “vida mansa” como a do candidato, Tas obteve como resposta um singelo soco com luva de pelica: ele, Eduardo Jorge, é médico sanitarista. E se move como a maioria das pessoas no Brasil: pega metrô, ônibus, anda a pé, usa bicicleta. Eduardo Jorge, elegantíssimo, nem sequer levantou a seguinte bola: teriam os brasileiros sem carro uma “vida mansa”? Fica subentendido, contudo, e a resposta todos nós sabemos: a última coisa que alguém que só pode andar de transporte público tem é uma “vida mansa”.

Tas não se deu por satisfeito e acusou Eduardo Jorge de hipocrisia, ameaçando postar uma foto do Eduardo dentro de um carro. Convenhamos, ameaça ridícula, considerando que em momento algum o candidato negou andar de carro. Ele não disse “não andem de carro nunca”. Ele pediu o que qualquer pessoa minimamente saudável e razoável já sabe: use menos o carro. Ponto.

O que significa este pedido? Este ano, por ocasião do Encontro Da Nova Consciência em Campina Grande [PB], tive a oportunidade de assistir a uma das palestras mais interessantes deste evento, considerando todas as que já vi desde que – muitos anos atrás – passei a frequentá-lo. O psicólogo Lucas Jerzy Portela deu uma conferência excelente sobre os problemas físicos e psíquicos desencadeados pela carrocracia.

Não pretendo detalhar, nem reproduzir perfeitamente o que Lucas disse. Vou sintetizar as coisas mais importantes, na minha opinião:

1. O uso excessivo de carros causa diversos males físicos e psicológicos.
2. O Brasil peca por se nortear em torno de uma veneração ao veículo automotivo por combustão: o carro.

Quais as soluções apontadas por Lucas? Sim, ele deu várias soluções práticas, e em nenhum momento estabeleceu um manual ou guia que devesse ser seguido, com fórmulas prontas ao estilo de imperativos categóricos kantianos. O que ele solicita [na verdade, não ELE apenas; o movimento pela libertação da carrocracia é muito mais amplo do que a existência do palestrante] é que as pessoas sejam razoáveis para o bem de sua própria saúde. E ser razoável significa pensar.

Por exemplo: se o lugar para onde você vai fica a dois quilômetros de onde você está, como você deveria se locomover? A não ser que você tenha restrições de movimento ou quaisquer outros problemas que justifiquem o carro, você deveria ir a pé. Não faz sentido ir de carro, ônibus ou táxi. Caminhar estes dois quilômetros vai fazer bem para sua saúde. Isso satisfaz inclusive outro ponto salientado por Lucas: a atividade física deveria ser processual, não pontual. Nós deveríamos estar em atividade física constante, ao invés de apenas dedicar uma hora por dia a isso.

Vamos a um exemplo prático e alguns contrastes: da minha casa até minha academia, são 800 metros. Eu vou a pé, todos os dias. Subo uma escadaria considerável e vou caminhando, já me aquecendo. Na volta, são mais 800 metros. 1,6 km de caminhada, sem contar o tempo na academia.

Eu conheço quem mora a 500 metros da minha mesma academia e vai até ela de carro. Além de ser mais um carro nas ruas [e um carro desnecessário, convenhamos], a pessoa ocupa uma vaga de estacionamento que poderia ser de outra pessoa que vem de um lugar mais distante. Um argumento possível “ir de carro é mais seguro” simplesmente não cola, pelo menos não NESTE trajeto. Seria mais honesto se estas pessoas assumissem: “sou viciado(a) em meu carro”. E, claro, tentassem reformular a maneira de usar tal veículo.

Não se trata de instituir o Império da Bicicleta, a Tirania do Pedestre, ou algo assim. A depender da distância e do que se encontre no trajeto [ladeiras imensas, chuva torrencial etc], faz mais sentido usar outros veículos. Fazer valer a razoabilidade é algo ao alcance de qualquer pessoa com inteligência normal e que não esteja profundamente adoecida pelo transtorno compulsivo carrocrático. O que se pede, é: pense no seu movimento pela cidade.

Quando vou para a USP [três vezes na semana], considerando o aperto do horário, eu vou de táxi. 17 reais até onde devo ir. Volto de ônibus, já que na volta não há pressa, o ônibus não vai lotado, e me deixa bem perto de casa.

Fiz uma experiência considerando meu trajeto até a escola onde aperfeiçoo meu inglês. Medi três vezes cada possibilidade.

De táxi, da minha casa até a escola, eu pago 24 reais e levo 30 minutos, às vezes mais, em decorrência do tráfego. É uma loteria.
De ônibus+metrô, eu pago 4,65 reais e levo redondos 20 minutos. O máximo que já levei foram 25 minutos.

Qual o sentido de pagar cinco vezes mais e ainda chegar 10 minutos depois? O conforto de estar sozinho num táxi? O glamour de ouvir o taxista derramando suas opiniões sobre a existência? [comigo quase sempre acontece, eu devo ter uma magnífica cara de machista pra ter que ouvir as piadas que eles contam e outros comentários, sendo que só eles riem até sucumbirem ao silêncio constrangedor que imponho].

Não faz sentido no meu caso, principalmente considerando que o ônibus e o metrô não estão lotados no horário que eu vou para a escola. Se eu vou num horário em que o ônibus está lotado, pego o táxi até o metrô: 12 reais até a estação. Com mais 3 reais, pego o metrô e corto todo o congestionamento, e ainda ajuda a tornar as ruas menos congestionadas. Em 4 estações, chego à escola.

Cada caso, evidentemente, é um caso. O fato é: temos carros, temos ônibus, podemos andar a pé, temos metrôs, há quem use bicicleta. Com tantos recursos à disposição, alguns bem razoáveis a depender do horário, ainda há quem use APENAS o carro. Exclusivamente o carro. SEMPRE.

E é nesta parte que alguém vai dizer “pra você é fácil falar! Eu moro na Zona Oeste e trabalho na Zona Leste! De transporte público minha vida seria uma merda!”. Se você pensou em usar este argumento, simplesmente pare e leia tudo novamente. Eu não estou dizendo que carro é proibido, mau e feio, não estou dizendo que carros são o demônio. Eduardo Jorge também não disse isso em momento algum. Se sua situação pede um carro, use-o.

[Lucas, o psicólogo, chega a ser mais duro sobre isso. Em sua palestra, ele disse que não faz o menor sentido morar tão longe do trabalho. Sugere que, se for seu caso, mude de casa, ou de trabalho. Claro, falar é fácil e nem todo mundo pode se dar a este luxo. Mas faz sentido considerar isso. Sua qualidade de vida aumentará substancialmente, se você conseguir morar perto do trabalho. A diferença será percebida em seu corpo e sua mente]

Pois voltemos aos 20 centímetros. É o tamanho de nossas mãos espalmadas. Olhe pra sua mão. Abra-a. Vislumbre a distância do mindinho ao polegar.

Em recente projeto informado pela prefeitura de São Paulo, Haddad anunciou que irá transformar o canteiro central da Avenida Paulista numa ciclovia permanente. Exatamente: aquele canteiro inútil será um pouco mais elevado e será uma ciclovia permanente. Além disso, passará a fibra ótica por baixo da avenida, retirando da Alameda Santos aquele aspecto horroroso de varal de quinta categoria. Sim, porque até os de Nápoles são mais charmosos.

Esta nova ciclovia vai tomar algum pedaço do trajeto dos carros? Sim. VINTE CENTÍMETROS DE CADA LADO. Isso mesmo, a extensão de sua mão espalmada.
Desespero, agonia: Haddad quer destruir São Paulo. Os donos de carros estão sendo oprimidos, coitadinhos. Vi de tudo subir em meu feed de notícias, hoje, desde reclamações mais moderadas até as completamente loucas: matem Haddad. Odiei o projeto. Ele vai acabar com a Paulista. Haddad quer oprimir os donos de carros [risos].

Meus caros, ninguém precisa oprimir donos de carros. Eles fazem isso uns com os outros, mutuamente, sempre que agem de maneira louca.

É claro, toda essa reclamação não é pelos vinte centímetros. Só mesmo muita má vontade e ódio a priori pra achar que vinte centímetros a menos de cada lado irá piorar ainda mais o tráfego da Avenida Paulista. Aliás, é ódio a priori que parece funcionar contra Haddad e suas ideias: ele é do PT, odeiem-no. Queria eu que Kassab ou qualquer outro prefeito do PSDB tivesse feito isso que Haddad agora ousa fazer. Aquele canteiro ridículo no meio da Paulista, um espaço inutilizado, se converterá em nova opção de trajeto veicular. Eu acho é ótimo.

A castração dos 20 centímetros do espaço para carros, sendo tomada como uma castração simbólica dos pintos carrocráticos, reflete apenas a má vontade diante de uma coisa que não muda o já existente: há um canteiro central largo e inútil na Avenida Paulista.

O que piora o tráfego da Paulista não são estes 20 centímetros a menos de cada lado. São NOVOS CARROS. O que piora o tráfego da Paulista é gente sem noção que anda de carro por ali, sendo que poderia caminhar, pegar o metrô [a linha verde é ótima]. Ou passar a usar a ciclovia a ser inaugurada.

Pausa. Novo exemplo, pra ficar bem ilustradinho: uma das pessoas que estuda na mesma escola de inglês que eu, mora ao lado da estação Brigadeiro. Nossa escola fica pertinho da estação Consolação. Esta pessoa tem a minha idade. E vai de carro. DE CARRO. Ela poderia ir a pé, ela poderia ir de metrô, mas não, ela vai de carro. Não, ela não é aleijada. Ela é viciada. Em carro. Ela é louca. E esnobe. Um dia, perguntei a ela: “mas por que você vem de carro?”. Ela respondeu: “porque eu posso”.

Porque eu posso. Então tá, né? Só existe a senhora no mundo. Maluca.

O argumento de que São Paulo não é uma cidade europeia para ter tantas ciclovias procede de algum modo. De fato, São Paulo não é Europa, parem de compará-la a Londres, isso ofende Londres. Ela foi feita para copiar Chicago e sua carrolândia. O relevo de altos e baixos não ajuda a quem quer andar a pé ou de bicicleta. Mas você não precisa andar de bicicleta por toda a cidade, ora!

Mas a principal diferença entre Sampa e as cidades europeias não está no relevo. Está na mentalidade. As Américas em geral, do norte ao sul, consideram o carro um símbolo de status e de poder. Europeus são diferentes, neste ponto. Europeus andam, e como andam! Mesmo com o metrô maravilhoso deles. Eles andam. A imagem de gente de 70 anos, magra e definida, andando de bicicleta, é banal em várias cidades europeias.

Desde que vim morar em Sampa, há quase dez anos, só ouço reclamações sobre o trânsito, dos próprios paulistas natos. Alternativas estão sendo dadas. A minha parte eu fiz: podendo ter carro, não o tenho. Não faz sentido em minha vida, não faz sentido em meus trajetos, se preciso de um, pego um táxi. Gasto menos do que gastaria se tivesse carro. Você precisa ter um? Então tenha. Mas reveja seus hábitos, verifique se você faz alguma coisa parecida com as que descrevi neste post enorme. A Europa, que tantos admiram, precisa primeiro ser trazida para dentro de você. Se você fizer isso, talvez os 20 centímetros saiam não apenas da Avenida Paulista. Sairão, também, da sua cintura americana carrocrática.