Marilia Fredini e Ana Carolina Surita, do cmais+Arte & Cultura

O cmais+, portal de conteúdo da TV Cultura, conversou com o curador da mostra, o professor e historiador Adílson Mendes, da Faculdade Belas Artes.
cmais+ | Como surgiu a ideia da mostra Eisenstein?
Adílson Mendes | Eisenstein / Brasil / 2014 surge da vontade de se contrapor à destruição em marcha da memória audiovisual no país. Com o desmonte da Cinemateca Brasileira, apesar do silêncio generalizado, toda a memória audiovisual do país foi afetada em profundidade e recuperar um dos grandes momentos da história do audiovisual (a obra de Eisenstein) é também uma forma de se contrapor ao silêncio, ao esquecimento produzido com a morte de uma instituição de cultura. Portanto, para mim que sou um historiador do cinema brasileiro, recuperar Eisenstein em um momento de regressão é a forma encontrada para lançar luz sobre o presente catastrófico dessa história.
Mas junto com esse gesto que procura marcar o momento presente da memória do audiovisual, a mostra também traz outras facetas pouco conhecidas do grande cineasta, como por exemplo seu trabalho com desenhos, ou sua relação com a música ou sua teoria recém-descoberta. Essas diferentes facetas constituem um todo que será destacado em uma série de conferências e de atos criativos.
Por fim, o surgimento da mostra está na publicação de um livro inédito do cineasta, Notas para uma história geral do cinema(Azougue Editorial). Esse livro é uma descoberta recente e acaba de ser publicado na França graças a François Albera. É graças a Albera que também publicaremos essa obra fundamental para se entender as concepções da história do cinema que orientam a teoria de Eisenstein. Nesse sentido, o livro é uma contribuição importante para o debate da história do cinema e pode servir de estímulo para pensarmos uma história “total” do cinema no Brasil.
cmais+ | Qual a importância de Eisenstein para o movimento construtivista russo e a formação da base cultural e política da União Soviética?
Adílson Mendes | Talvez seja mais produtivo perguntar a importância do Construtivismo russo para a formação de Eisenstein, pois apesar dele frequentar os construtivistas e conhecer o debate e as formulações teóricas do movimento ele não é uma figura central dessa vanguarda plástica. Eisenstein incorpora questões da vanguarda (autonomia da arte, relações com o mundo científico da técnica, arte e utopia, organização em grupos etc.) mas também de outros campos do saber (o teatro de Meyerhold, os discursos científicos sobre o corpo, Pavlov, Bekhterev entre outros).
Não é simples definir a relação de Eisenstein com a cultura russa, que em períodos específicos encontrou nele a expressão universal, mas frequentemente o viu como exótico demais. Até hoje a relação da cultura russa com Eisenstein é controversa.
cmais+ | O uso da montagem cinematográfica na construção do discurso foi muito importante no cinema de vanguarda europeu dos anos 20, principalmente entre os russos. A imagem perdeu força ao longo do século XX?
Adílson Mendes | De fato, a montagem como princípio artístico orientou a arte de exceção ao longo de todo o século XX e a potência da imagem para ter se transformado, mas eu não diria que ela perdeu a força. Quando tomamos um metrô em São Paulo – ou em qualquer outra cidade – vemos como a imagem ainda possui extrema potência para seduzir e conduzir gostos, formas de vida, visões de mundo. O advento do 3-D, por exemplo, uma tradição pictórica anterior ao próprio cinema já indica que a imagem não perdeu sua força, mas se transformou radicalmente.
A imagem digital mudou as formas de visualidade: ao invés de uma janela para um vista a ser contemplada, o que surge é uma imagem como passagem, como portal, uma interface ou parte de um processo sequencial.
Se considerarmos o retorno do 3D, como o faz o historiador Thomas Elsaesser, temos uma nova qualidade de imagem que visa menos a representação mimética e mais a localização espacial. Ou seja, a imagem digital, em especial o 3D, estaria reformulando a semântica da percepção, e o espaço estéreo se convertendo em espaço habitual. E nesse sentido, o cinema apenas aponta uma tendência que vemos em celulares, videogames, GPS e outras telinhas que já nos habituamos a ver em 3D.
O observador fixo da perspectiva renascentista parece ter se transformado e, em seu lugar, surgiu uma visão mais móvel, uma onipresença espacializada, se podemos dizer. Elsaesser chega a falar em imagem pós-pictórica.
Não deixa de ser significativo que essa transformação trazida pela imagem digital, com o 3D à frente, de alguma forma foi antevista por Eisenstein, que escreveu sobre a estereoscopia e sua tradição que foge da perspectiva renascentista.
cmais+ | No programa da mostra, você sugere uma influência de Eisenstein nas obras de Glauber Rocha e Leon Hirszman. Como o cinema brasileiro tratou essa influência russa na construção de sua estética a partir desses cineastas? Existe algum cineasta contemporâneo em que você observe essa influência também?
Adílson Mendes | É preciso dizer que Eisenstein é uma referência importante para toda a arte brasileira de exceção no século XX, de Limite, de Mário Peixoto, passando teatro de Oswald de Andrade (particularmente em O homem e o cavalo, onde o cineasta vira personagem), o Cinema Novo e até por uma música como Domingo no parque, de Gilberto Gil.
É muito significativo que Eisenstein tenha sido recuperado em momentos de transformação do campo artístico no Brasil, especialmente nas décadas de 1930 e 1960. Sem hesitar, podemos dizer que Eisenstein ocupa no Cinema Novo o mesmo lugar que Rossellini ocupa na Nouvelle Vague. Glauber Rocha reivindica ao longo de seu trabalho a conexão com o cineasta russo. Em carta ao crítico Paulo Emilio ele chega a assumir que todos os seus filmes se inspiraram em determinados filmes de Eisenstein. Mateus Araújo fez um alentado estudo para mostrar como Eisenstein é para Glauber o mestre maior.
O mesmo acontece com Leon Hirszman, que fez seu primeiro filme, Pedreira de São Diogo, como ilustração das teses do autor da noção de cinema intelectual. Um trabalho estilístico de história do cinema certamente comprovaria esse impacto em filmes os mais diversos. Porém, é sempre bom lembrar que a presença de Eisenstein no Cinema Novo é sempre encarada como uma incorporação, uma tradução de um conteúdo histórico que ganha força e se transforma.
Enfim, toda vez que a cultura brasileira se interessou em profundidade por Eisenstein houve um salto qualitativo. Naturalmente que essa mostra não tem pretensões de reformulações abrangentes, mas ao menos contribui para que Eisenstein comece a ser repensado num país que destrói sua memória audiovisual. Eis uma justaposição inusitada.

SAIBA +
MIS dedica sua programação ao cineasta soviético Sergei Eisenstein
Nenhum comentário:
Postar um comentário